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O aumento do preço dos alimentos e o vírus econômico

Por Rogério Castro

A alta no valor dos gêneros alimentícios explicita como é puramente ideológica a premissa liberal de que o mercado é autorregulatório. Não são apenas os economistas dessa vertente, entretanto, que radiografam a realidade de forma insuficiente

A economia de mercado continua a nos brindar com mais um colosso. Trata-se da alta nos preços dos alimentos. Arroz, feijão, óleo de soja, proteína animal, itens de primeira necessidade, ou da chamada cesta básica, registraram no último quadrimestre de 2020 altas consideráveis, sentidas no bolso da população menos abastada. Como consequência, o aumento produziu a pressão inflacionária. O curioso (e contraditório) a destacar não são apenas as causas da elevação dos preços, mas a naturalização com que a imensa maioria dos economistas, sonegando ao grande público gritantes contradições, aborda o problema. Doa a quem doer, custe o que custar, as “eternas” e “naturais” leis do mercado são arrebatadoras; resta a nós, homens, prostrar-nos ante a elas.

O ponto comum da alta dos preços dos principais itens alimentícios é a desvalorização cambial. Com o dólar mais caro, o produtor capitalista de soja, arroz, proteína animal etc. prefere vender para o mercado externo do que prover o mercado local. A razão disso é simples: como as mercadorias são vendidas em moeda estrangeira, o produtor embolsa R$ 5 e mais alguns centavos por cada dólar vendido. Um negócio tentador, pensam alguns, mas de consequências danosas para a imensa maioria da população. Preços mais altos, sem a devida compensação no salário/renda, significam menor capacidade de consumo — ou seja, o empobrecimento.

De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), nos oito primeiros meses de 2020, o preço do arroz foi acrescido em 19,25%, o do feijão preto 28,92%, o do carioca 12,12% e o do óleo de soja 18,63%. E aqui advém, ao menos, mais uma contradição altissonante — e que incidiu na variação. Segundo a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), a área de cultivo de arroz e feijão sofreu diminuição, pois os seus produtores decidiram migrar para o (mais rentável) mercado (externo) da soja — informação que foi confirmada por corretores de mercado. Além dos preços dos derivados de soja não caírem (caso do óleo de cozinha) e da diminuição da oferta dos itens com produção amputada (e, consequentemente, a elevação dos preços), a situação explicita um aspecto do que nos séculos 19 e 20 chamou-se de anarquia da produção. Se, por um lado, o fato de morar em um país com terras abundantes e férteis (além de numerosa força de trabalho “desocupada”) não garante, prioritariamente, a alimentação para os seus habitantes (inclusive a preços acessíveis), por outro, a produção sem um planejamento conforme às necessidades da população mostra o quão é puramente ideológica a premissa liberal segundo a qual o mercado é autorregulatório.

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As leis cegas da economia (um contrassenso absoluto por se tratar de uma atividade exclusivamente humana), que na verdade são a mera expressão do desejo do indivíduo (produtor) privado, não preveem as consequências — e a retumbante ironia — de um país com extensão territorial superior a 8 milhões de quilômetros quadrados ter que importar arroz e feijão. Esta, aliás, foi a “solução” dada pelo ministro da Economia do Brasil, um servo incondicional das leis naturais da economia: zerarmos a taxa de importação do arroz! Para além de não contestá-lo acerca do seu “intervencionismo” (pouparemos ele desse importuno), cumpre observar que tal medida, que ao olhar comum poderia ser explicada como uma “gambiarra”, significa abdicação de receitas (mais um, entre outros vários contrassensos, se se considera a situação fiscal nos estertores do estado de emergência; ou seja, cavo mais um buraco no momento em que estabeleço como uma de minhas metas “cobrir” o déficit nas contas).

Nossos economistas não terão gostado nada de ter chegado até aqui e ver verdades correntes sendo desprevenidamente derruídas. De fato, não são os economistas assumidamente liberais os únicos a radiografar a realidade de modo insuficiente. No afã de responsabilizar o governo, economistas heterodoxos veem na baixa dos chamados estoques regulatórios o motivo da disparada dos preços. Noutras palavras, creem que o problema econômico é resultado da baixa regulação. Para eles, com um pouco mais de intervencionismo, a roda da economia giraria sem cessar, tal qual roda-gigante: precisaria apenas de um “impulso” exterior.

Mas a situação que testemunhamos no Brasil refuta essa visão “encantada” da economia. Não é preciso muito esforço para enxergar (e justapor) as inúmeras contradições que o atual ordenamento econômico, incessantemente, produz. A única maneira de tais contrassensos não serem percebidos é pelo ignorar propositado ou pela visão turva do observador, certamente conduzido a uma bolha ideológica que lhe interdita um contato genuíno com a realidade.

Passadas duas décadas do século 21, o melhor exame da economia de mercado — onde as contradições que emanam dela não são ignoradas, mas antes, encaradas —, por mais obsoleto que seja para alguns, continua sendo aquele feito por Karl Marx, ainda no século 19. Com ele, não apenas as leis de natureza econômica foram desnaturalizadas, desmistificadas, refutadas enquanto uma força exterior que dita aos homens o que deve ser feito (fetiche), como também, e principalmente, foi fornecida a base (ou o caminho) para uma organização societal depurada das fontes de tais contradições — e, principalmente, livre das suas cruéis consequências (bem como liberta das incertezas geradas pela sua própria lógica interior).

Rogério Castro é doutor em serviço social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professor universitário pelo Programa Nacional de Pós Doutorado/Capes vinculado ao Mestrado em Serviço Social da Uece (Universidade Estadual do Ceará).

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