O DILEMA DE TAIWAN, no berço da nova “ordem mundial”

A retirada das tropas americanas do Afeganistão deixa atrás de si um vácuo de poder
e uma zona de grande turbulência no centro da Ásia, nas “costas” da China. Deixa por fazer
também uma “negociação de paz” e “divisão de poder” em Cabul que produzirá efeitos em
cadeia, por um longo tempo, em boa parte da Ásia e do Oriente Médio. Uma negociação
de paz que não contará com a participação direta dos EUA, principal responsável e maior
derrotado na Guerra do Afeganistão, que envolverá de uma forma ou outra países que não
participaram diretamente do conflito, mas que serão afetados por seus desdobramentos
nos próximos anos, como é o caso de Paquistão, Índia, China e da própria Rússia, que tem
presença militar importante no Quirguistão e no Tajiquistão. Deve-se também incluir Irã e
Turquia, que atuam como uma cadeia de transmissão geopolítica na direção do Oriente
Médio, de onde os EUA também estão se retirando, ou pelo menos reduzindo sua presença
militar

Mesmo assim, e apesar da complexidade desse quebra-cabeças no centro da Ásia,
a nova ordem mundial “sino-americana” deverá nascer de fato do outro lado da China, a
partir de uma disputa que já dura 70 anos, em torno à ilha e ao controle do Estreito de
Taiwan, onde se tem se assistido, nos últimos meses, a uma escalada de ameaças e
“exercícios de guerra” cada vez mais frequentes e perigosos, envolvendo as Forças
Armadas chinesas e americanas, junto com seus principais no sul e sudeste asiático. Agora,
na recente comemoração dos 100 anos do PCC, o governo chinês tornou púbico um plano
estratégico de assalto e ocupação militar de Taiwan, já contabilizando a resposta previsível
dos EUA. Apesar de que todos saibam que neste caso a surpresa do primeiro ataque é um
elemento fundamental, e que portanto a divulgação deste plano é apenas mais um passo
na escalada psicológica do clima de guerra na região. Por outro lado, os EUA já mudaram sua “grande estratégia” e estão deslocando seu foco do Atlântico, da Europa do Leste e da Rússia, na direção do Pacífico e da Ásia, hoje epicentro dinâmico da expansão do poder e da riqueza mundiais, e do crescimento competitivo dos arsenais militares do mundo. O mais provável é que substituam progressivamente seu “espantalho russo” pelo seu novo grande inimigo chinês

Mas atenção, porque essa mudança americana não foi provocada pela explosão
econômica da China, e sim pela decisão chinesa de construir um poder naval autônomo –
decisão que só foi efetivada de fato a partir da primeira década do século XXI. Um poder
naval chinês que seja capaz de desbloquear a livre circulação de seus fluxos comerciais e
energéticos através dos estreitos de Taiwan e de Malaca, e de permitir a projeção
internacional do seu pode marítimo. Um projeto que se acelerou definitivamente depois da
posse do presidente Xi Jinping, em 2013, e do seu anúncio de que a China se propõe a ser
um poder militar global até meados do século XXI. Decisões que redefiniram imediatamente
a importância estratégica das duas grandes “linhas de ilhas” que bloqueiam a saída
marítima chinesa como se fossem uma “Grande Muralha” invertida. Bem no centro da
primeira dessas duas cadeias de ilhas está Taiwan, uma espécie de porta-aviões inimigo
situado a apenas 130 quilômetros da costa chinesa.

Em 1954, o secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles afirmou que a
ilha de Taiwan não passava de um “punhado de rochas”2
. Ao mesmo tempo, foi o próprio
Dulles que ameaçou a China com um ataque atômico, caso tentasse retomar à força esse
“penhasco” onde se refugiou, em 1949, o general nacionalista Chiang Kay-shek, junto com
o que restou de suas tropas derrotadas pela revolução comunista liderada por Mao Tsetung. Apesar do aparente paradoxo, Dulles tinha razão, porque a ilha de Taiwan era apenas
um punhado de rochas que os próprios americanos transformaram num território
estratégico para barrar a expansão do poder chinês. A mesma ambiguidade existiu pelo
lado do império chinês, que só deu alguma importância a Taiwan muito tarde, após sua
conquista pelos holandeses, em 1624, e pelos espanhóis, em 1626, e depois de a ilha virar
refúgio dos últimos soldados da Dinastia Ming derrotados pela Dinastia Qing, que
conquistou a ilha em 1683. Esta só a transformou oficialmente em província do Império em
1885, dez anos antes de entregá-la ao Japão como tributo por sua derrota na guerra de
1895, contra os japoneses; estes a converteram numa colônia que só foi devolvida à China
em 1945, depois da rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial. E assim mesmo,
quatro anos depois, a ilha voltou a ser o refúgio do general Chiang Kay-shek.

Em 1949, Taiwan tinha apenas sete milhões de habitantes e só sobreviveu como
“província rebelde” graças à proteção militar dos EUA. Na prática, Taiwan se transformou
num “Estado vassalo” dos EUA, com a pretensão irrealizável de “reconquistar” e “reunificar”
a China. O mesmo objetivo invertido do governo chinês, uma vez que nenhum dos dois
jamais aceitou a ideia americana de criação de “duas Chinas”. E foi aqui que começou a
história contemporânea desse “penhasco”, que adquiriu importância estratégica cada vez
maior com o passar das décadas, confirmando a tese de que é a luta pelo poder que define
a importância da geografia. Começando em 1954, logo depois do fim da Guerra da Coreia,
quando a China tentou retomar as ilhas de Quemoy e Matsu, no “caminho” de Taiwan, mas
foi repelida pelos porta-aviões norte-americanos. Logo em seguida, foi assinado o “Acordo
de Defesa Mútua”, que transformou Taiwan também num “protetorado militar”, uma vez
mais defendido pelas forças norte-americanas em 1958, quando as tropas chinesas
voltaram a ser repelidas das duas pequenas ilhas, e quando a URSS ameaçou pela primeira
vez utilizar armas atômicas caso os EUA atacassem o território chinês.

Desde então e até o início da década de 70, vigorou uma espécie de “coexistência
combatente” entre China e Taiwan, onde os EUA instalaram finalmente suas próprias bases
militares. No entanto, a situação mudou radicalmente depois da assinatura do Comunicado
de Shangai, em 1972, que consagrou a reaproximação entre os dois países depois do
reconhecimento, por parte dos EUA, de que o território de Taiwan faz parte e é inseparável
do território chinês, porque só existe uma China, com capital em Pequim. Depois desse
reconhecimento, os EUA transferiram sua embaixada para Pequim, cancelaram o Acordo
de Ajuda Mútua com Taiwan, desmontaram sua base militar na ilha e finalmente retiraram
suas tropas do território de Taiwan. E foi esta vitória chinesa que abriu as portas para a
integração econômica que transformou em poucos anos Taiwan no segundo maior
investidor “estrangeiro” na economia continental da China.

A situação de calmaria, entretanto, se modificaria uma vez mais na década de 90,
após o fim da Guerra Fria, quando o primeiro governo eleito de Taiwan propôs a
independência da ilha, mesmo sem contar com o apoio explícito dos EUA. A proposta
provocou imediata mobilização militar da China, trazendo de volta ao Estreito de Taiwan os
porta-aviões da Sétima Frota dos EUA. Tudo indica que exatamente naquele momento
começou a ser concebida a nova estratégia chinesa de criação de um poder naval
autônomo, capaz de derrotar as forças americanas no Mar do Sul da China e em Taiwan.
Como resultado dessa decisão, a China começou a adquirir ou produzir os 80 submarinos
convencionais e atômicos de que dispõe atualmente, ao lado de 3 porta-aviões (o terceiro
ainda inacabado) e mais 1.275 novos barcos que foram somados à sua guarda costeira,
transformando-a no maior poder naval entre todos os seus vizinhos asiáticos

Os EUA controlam hoje todos os pontos estratégicos entre o mar do Japão, o Oceano
Indico e o Pacífico Sul capazes de bloquear instantaneamente os fluxos comerciais e
energéticos indispensáveis à sobrevivência diária da China. Depois da decisão chinesa de
criar um poder naval próprio, e após o gigantesco crescimento da economia chinesa, a
situação ficou intolerável para os chineses. Estes agora já podem se propor a controlar o
Mar do Sul da China e vencer os EUA em todos os cenários de guerra, além de dispor do
poder naval, aéreo e terrestre para ocupar Taiwan, mesmo no caso do envolvimento de
tropas americanas, a menos que os EUA decidam utilizar armamento atômico, com
consequências imprevisíveis para os dois lados, uma vez que a China provavelmente
responderia utilizando suas próprias armas atômicas táticas.

Os norte-americanos têm plena consciência de que o controle de Taiwan deixou de
ser apenas uma disputa territorial chinesa, e passou a ser uma condição essencial para
que a China tenha acesso soberano ao Pacífico e ao Mar da Índia. E os EUA também
sabem que os chineses podem ocupar e vencer Taiwan em poucos dias ou semanas,
mesmo com a intervenção americana. Ao mesmo tempo, sabem que sua derrota na batalha
em torno da ilha afetaria seu poder naval no sul do Pacífico, e sua credibilidade frente a
seus aliados regionais e em todo o mundo. Por outro lado, os chineses têm plena
consciência de que sua vitória militar não encerraria o problema de sua “província rebelde”,
e que depois de sua vitória sobre Taiwan, a ilha poderia se tornar cenário de uma guerra
de guerrilha sem fim, financiada pelos americanos e seus aliados regionais, como
aconteceu de forma invertida com os EUA na guerra do Vietnã, nos anos 1960-70.

Por isso, se estivéssemos frente a uma partida de xadrez, poderíamos dizer que os
chineses estão com as “pedras brancas” e são eles que deverão abrir o jogo e mover suas peças em primeiro lugar. Mas os norte-americanos possuem a “vantagem da defesa”4 e só
moverão suas “pedras pretas” depois dos chineses. Se a China atacar Taiwan, teremos
uma ordem mundial; mas senão o fizer, teremos uma outra “ordem” inteiramente diferente,
e o mesmo aconteceria caso os norte-americanos ultrapassassem a “linha vermelha”
definida pelos chineses. Nesse contexto, quem “piscar primeiro” ou cometer um “erro de
cálculo” poderá enfrentar consequências catastróficas. Por isso, o mais provável no curto
prazo é que Taiwan se transforme no foco central e conflito permanente (como Berlim, no
início da Guerra Fria), a partir de onde irão nascendo e se definindo os “protocolos básicos”
da nova “ordem internacional”.

Se isso ocorrer, há que se manter a cabeça fria, porque talvez o mundo possa estar
chegando, por este caminho, ao seu “novo normal”, diferente do que se poderia pensar à
primeira vista, porque em última instância, como já dissemos em outro artigo, “o que
estabiliza a ordem hierárquica deste sistema interestatal – sempre de forma transitória –
não é a existência de um líder ou ‘hegemon’, é a existência de um conflito central, e de uma
guerra virtual entre as “grandes potências”. Uma espécie de ponto de referência para o
cálculo estratégico de todos os demais Estados, que atua também como um freio ao arbítrio
unilateral dos mais poderosos. Como ocorreu com a disputa entre o Império Habsburgo e
a França, no século XVI; ou com a disputa entre a França e a Grã-Bretanha nos séculos
XVIII e XIX; ou mais recentemente, com a disputa entre os EUA e a União Soviética, depois
da Segunda Guerra Mundial”

A grande diferença, em relação à Guerra Fria, é que agora são duas grandes
civilizações que estão lutando, mas ainda assim, estão lutando com as mesmas armas,
pela mesma riqueza capitalista e pelo mesmo poder global.

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