Por Wesley Ferro Nogueira*
Em qualquer cidade do mundo, a implementação de uma política de mobilidade urbana sustentável passa, compulsoriamente, por três eixos principais: priorização e fortalecimento dos modais ativos (circulação a pé e por bicicleta); ampliação da participação do transporte público coletivo dentro das viagens feitas pela população, com sua priorização dentro do sistema viário e, por fim, o desestímulo ao uso de automóveis nos deslocamentos diários dentro do espaço urbano. Não há como se falar em sustentabilidade, se a política não incorporar essas diretrizes.
No Brasil, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) se concentra exatamente na defesa dessas premissas como alternativa para a mudança de paradigma dentro dos municípios. A mesma lógica é reproduzida pelo Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal (PDTU/DF). Então, não tem muito o que se inventar. Se a política pretende ter um viés sustentável, ela obrigatoriamente precisará priorizar modais ativos e o transporte público, ao mesmo tempo que reduz os históricos e generosos privilégios concedidos aos automóveis.
Aqui em nosso território tenho produzido muito conteúdo, acompanho atentamente os debates e me concentro na leitura de documentos produzidos que tratam da mobilidade urbana no DF e Entorno, sempre com a expectativa de que a defesa da sustentabilidade seja reforçada e que ocorra a ampliação da compreensão sobre a necessidade de se repensar o nosso modelo de desenvolvimento, que não pode ser avaliado como um objeto de desejo apenas dos ativistas da área, mas como um referencial para toda a sociedade.
Nesse sentido, recebi com expectativa um documento recentemente produzido por uma organização local, com o título de “Desigualdade da Mobilidade Urbana no Distrito Federal”. No entanto, a leitura se transformou em decepção, pois o que se imaginava que poderia ser um instrumento de apoio à sustentabilidade, na verdade se tratava de apenas mais um esforço
subliminar para desqualificar o transporte público e para reforçar a importância dos automóveis
dentro da matriz de viagens, além de apresentar conclusões que divergem do quadro real.
Ao apresentar como problema o fato de se despender muito tempo para encontrar estacionamento na área central e, ao mesmo tempo, promover críticas à iniciativa recente do GDF em tentar estabelecer cobrança pelo uso de vagas no espaço público, o documento vai na contramão do que estabelece a PNMU, que expressamente define a política de estacionamento como um dos instrumentos de gestão para regular o uso de automóveis dentro do espaço urbano.
A criação de facilidade para a localização de vagas não é premissa para nenhuma política sustentável e a ampliação da oferta só vai contribuir para induzir à circulação e ao acesso de mais automóveis ao Plano. Os estacionamentos deverão ser implantados junto às estações do metrô e terminais de ônibus na entrada da rede de transporte público, para estimular a integração intermodal, mas não na área central, como defende o documento.
A opção pelo uso do automóvel no DF é justificada no documento por aquilo que seria a limitação do transporte público. Uma rede que conta com 800 linhas, que opera com 2.800 veículos e que atende 900 mil passageiros/dia pode ser considerada limitada? O uso do automóvel se dá pelo fato do sistema de transporte público ser ineficiente ou não seria pelo fato de inexistirem instrumentos implantados de restrição ao uso do transporte individual motorizado e de priorização do modal coletivo, assim como fizeram várias cidades ao redor do mundo?
O documento divulgou ostensivamente a informação de que 60% da população do DF usa o transporte público e que na região compreendida pelo Grupo 1, que envolve as áreas com maior renda, 40,7% dos seus moradores seriam usuários dos ônibus da rede. A conclusão da pesquisa apresenta dados diferentes do padrão de tudo que se tem conhecimento sobre a realidade local e demonstra, de forma equivocada, que o território não seria configurado pela presença majoritária do automóvel dentro do sistema viário.
Ao contrário disso, a Pesquisa de Mobilidade Urbana (PMU) realizada em 2016, e que subsidiou a elaboração do Plano de Desenvolvimento do Transporte Público sobre Trilhos do DF (PDTT), identificou que as viagens feitas através de automóveis representavam 49,5% do total, enquanto que o transporte público contribuia com somente 27,7% dos deslocamentos. Não se tem conhecimento de que possa ter ocorrido uma mudança radical dentro da matriz modal do DF, com o aumento da participação do transporte público, até porque a volta dos congestionamentos nas vias do DF sinaliza que essa transformação ainda está longe de ocorrer.
Também preocupa informações divulgadas de que 6% dos habitantes da região do Grupo 1, que engloba áreas como o Plano, Lago, Sudoeste e Park Way, fazem uso do transporte pirata para os seus deslocamentos ou de que 32,7% da população desse mesmo universo não realizam mais viagens pela ausência da oferta de transporte público nas proximidades, o que parece não representar de forma fidedigna a realidade.
Nesse caso específico, recordo dos dados da mesma PMU/2016, que identificou que 81,6% das viagens originadas no Sudoeste/Ocotogonal e 70,1% no Plano são realizadas por automóveis, apesar da grande oferta disponível de transporte público. Não ocorre uma baixa oferta de transporte público no DF, o que há é um generoso sistema viário apropriado por automóveis e a falta de instrumentos para restringir o seu uso.
Não há dúvidas de que o transporte público do DF precisa ser qualificado para assumir o protagonismo dentro da cidade, mas qualquer iniciativa que se apresente como do campo da mobilidade urbana deveria ter a preocupação de se alinhar com os preceitos da política nacional, ao invés de atacar o sistema e, com isso, apenas contribuir para reforçar o discurso de que é preciso investir em soluções para automóveis, assim como vemos com tanta frequência. É preciso entender que o transporte público é um eixo indutor de desenvolvimento socioeconômico e que, por isso, precisa ser priorizado dentro da cidade.
É necessário se modificar com urgência a percepção da sociedade em relação ao sistema de transporte público e o papel da gestão pública é fundamental para isso. A sua qualificação não se dará, por si só, com a realização de uma nova licitação, mas com a combinação de alguns fatores essenciais para a mudança do atual modelo.
O início do processo de transformação não exige a espera da licitação para acontecer e uma das primeiras iniciativas que poderiam ser implementadas passa obrigatoriamente pela implantação de faixas exclusivas nos principais eixos de circulação dos ônibus do transporte público, que até não precisaria ser propriamente o BRT, mas até corredores com custo menor de instalação e com a devida gestão de tráfego para garantir a efetividade da priorização no sistema viário.
Essas medidas já iriam representar um grande diferencial no tempo de viagem, que também seriam beneficiadas com a definição de que todas as outras vias de interesse de circulação do transporte público passariam a ser impedidas de utilização como estacionamento de veículos ao longo do meio-fio, além claro da viabilização de faixas reversas nas rodovias de acesso ao DF, nos horários de pico, para atender
o serviço interestadual semiurbano.
A qualificação do transporte público também seria plenamente beneficiada se o Centro de Controle Operacional (CCO) estivesse em funcionamento. É inconcebível que um instrumento previsto no edital de licitação de 2011 ainda não tenha sido implementado pelo GDF. Como fiscalizar a prestação do serviço e o cumprimento rigoroso de frequências e planilhas de horários, por parte das concessionárias, se o CCO ainda não foi instalado? O CCO é imprescindível para o planejamento da rede, redimensionamento de frota e a gestão do sistema e, nesse sentido, não há explicação para essa opção feita pelos governos em abrir mão de um instrumento que ajudaria a garantir eficiência ao transporte público.
Uma das principais críticas de usuários ao sistema de transporte público se refere ao tempo de espera nas paradas. Sem a informação do tempo de chegada do ônibus, a espera parece se prolongar de forma angustiante. Como os veículos do sistema contam com GPS, a identificação da localização em tempo real é possível e o acompanhamento do deslocamento já é monitorado via aplicativo.
No entanto, a percepção do usuário certamente melhoraria se também existissem painéis eletrônicos com a informação do tempo de chegada dos ônibus de cada linha nas paradas (pelo menos naquelas com maior fluxo de usuários), assim como ocorre no sistema metroferroviário. Essa experiência está sendo implementada na cidade de Campinas/SP e poderia ser viabilizada no DF através de parcerias com o setor privado.
Na mesma linha de defesa, a imagem do sistema de transporte público também mudaria de status se a transparência fosse exercida de forma integral, seja na disponibilização dos dados sobre o aporte de recursos, nos processos de revisão e reajuste das tarifas técnicas, na gestão ou nas tomadas de decisão. Aliado a isso, a efetivação do controle social como mecanismo auxiliar de suporte no planejamento e na fiscalização da execução da política pública contribuiria para inserir a sociedade na defesa do sistema de transporte público.
Considerando o fim dos atuais contratos e diante da perspectiva de uma nova licitação, a qualificação também seria alcançada com a definição de uma série de itens no edital do novo processo, como o estabelecimento de modelo de remuneração baseado em custos do sistema e no cumprimento de requisitos formais de desempenho; a adoção efetiva do Índice de Qualidade do Transporte (IQT); veículos com piso baixo e motor traseiro; substituição gradativa da matriz energética; sistema tronco-alimentado; integração intermodal; integração tarifária com o sistema do Entorno; barateamento de tarifas com o aporte de recursos extratarifários; etc.
Em cenário mais distante, a criação do Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM) é uma diretriz para a qualificação do transporte público em todo o território nacional. No entanto, em curto e médio prazo há várias alternativas para que o transporte público do DF e do Entorno experimentem um processo de transformação. A decisão política de mudança de paradigma depende da gestão pública. É hora de começar.
*Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto
MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o
automóvel”, integra a Rede Urbanidade e é membro titular do Conselho de Transporte
Público Coletivo do DF.