O Partido Socialista Operário Espanhol enterrou cinco anos de divisão interna neste sábado, na jornada inaugural de seu 40º congresso, em Valência. O abraço entre Pedro Sánchez e Felipe González, um de seus maiores críticos dentro do partido, simbolizou o fechamento das feridas abertas e a reconciliação dos dirigentes atuais com o passado da organização. Os socialistas saem de seu congresso mais tranquilo desde 2008 com uma reafirmação de seus princípios social-democratas, aos quais agora se somam as etiquetas verde e feminista, dois dos eixos que monopolizaram os debates dos delegados socialistas. Na tradição da social-democracia, o partido de Sánchez aposta numa reforma tributária que, sem mexer no bolso da classe média, contribua para a “justiça fiscal” e amplie a arrecadação pública. A promessa de substituir o modelo produtivo por uma economia limpa se une às várias resoluções aprovadas para avançar nos direitos da mulher, entre elas o compromisso de proibir a prostituição. As reivindicações feministas, em todo caso, foram praticamente o único assunto que motivou alguma controvérsia no encontro. Estas são as grandes linhas programáticas aprovadas pelos socialistas:
Sem dúvidas sobre o modelo de Estado. O debate entre Monarquia e República é um clássico em todos os congressos do PSOE, e este seria exceção – ainda menos com os socialistas no Governo. Como prova, a saudação que corre no palácio de La Moncloa, sede do Executivo: “Saúde e monarquia parlamentar”, como variante de “Saúde e República”. “Congresso após congresso, o PSOE defende a Constituição. Este partido respeita o pacto constitucional de 1978, do qual fomos garantes e o somos a cada dia”, afirmou a vice-secretária-geral Adriana Lastra na abertura do congresso
A direção partidária – na qual havia preocupação com o mal-estar social, multiplicado em suas fileiras com os escândalos tributários de Juan Carlos I – se encarregou de que a irritação com o rei emérito não escapasse ao controle como em 2017. Naquela ocasião, uma proposta das Juventudes Socialistas em favor da República obteve os apoios necessários na comissão preliminar. A equipe de Sánchez teve que se empenhar a fundo para atenuar seu conteúdo e evitar que a discussão sobre o tipo de Estado fosse a debate entre os cerca de mil delegados no plenário do congresso. Ao final, o texto enfatizou apenas o fortalecimento dos “valores republicanos” do partido. O projeto político do PSOE para o futuro não se move daí, reconhecendo um “lugar destacado” para os “valores republicanos da igualdade e fraternidade”. Por outro lado, se propõe a “aprofundar a transparência e a prestação de contas” de todas as instituições do Estado, incluída a Casa Real. Um avanço, destacam os socialistas, que coincide com a vontade manifestada pelo rei Felipe VI.
Reforço do multilateralismo do Estado autonômico. O PSOE não renuncia à sua pretensão de uma Espanha federal como melhor antídoto para os conflitos territoriais que se arrastam há décadas e que têm seu epicentro na Catalunha. Mas os socialistas assumem a impossibilidade, neste momento, de uma reforma da Constituição, que precisaria contar com o apoio do conservador Partido Popular. “Só será possível com o consenso do conjunto da sociedade espanhola, também das forças políticas”, diz o texto. O projeto político socialista para os próximos anos deixa para trás definitivamente o conceito de uma Espanha “plurinacional” que Sánchez promoveu ao retomar o controle do partido em 2017 e, na posição moderada que a condição de Governo recomenda, aposta em ir além da co-governança durante a pandemia e melhorar a cooperação entre as diferentes esferas da administração pública: “A Espanha multinível exige instituições que patrocinem e fortaleçam o multilateralismo no qual os diversos níveis de governo possam cooperar e resolver conflitos com regras de funcionamento claras e transparentes”, afirma a declaração. Enquanto isso, o PSOE reafirma a necessidade de uma modificação da Lei Fundamental para fortalecer o Estado do bem-estar, desenvolver o Estado das Autonomias regionais num sentido federal, ampliar direitos e liberdades e incorporar a Europa ao texto constitucional.
Dentro da estratégia de fortalecer a coesão territorial, os socialistas estão convictos da necessidade de descentralizar diversos organismos, transferindo total ou parcialmente suas sedes de Madri para outras cidades. O Governo lida com a possibilidade de mudar alguns órgãos públicos e autarquias. A declaração socialista também prioriza a transferência de competências e recursos dos governos regionais para as prefeituras. “Trata-se de uma descentralização pendente há mais de 30 anos. É hora de reivindicar no âmbito local as competências para programas e serviços de proximidade junto ao correspondente financiamento”, inclui o texto, que responde às reivindicações de prefeitos de várias vertentes políticas, que citam como exemplo as dificuldades que encontraram para enfrentar a covid-19.
Tributação progressiva e harmonização fiscal. A intenção do Governo, que permanece à espera de um relatório de especialistas em questões fiscais que deve ser concluído no começo de 2022, é atacar no que resta de legislatura uma profunda reforma tributária “sem aumentar a carga das classes médias e melhorar a justiça fiscal”. A exposição reafirma o compromisso com a “reconstrução” de um sistema fiscal progressivo, “que contribua diretamente para a redistribuição da renda”. Sánchez prega o mesmo nos fóruns internacionais e na Espanha: acabar com a competição fiscal entre territórios, seja entre países membros da UE ou entre as comunidades autônomas espanholas. O acordo que a OCDE selou com 136 países para fixar uma alíquota tributária mínima de 15% para as multinacionais coincide com as tese do Executivo de Sánchez. E marcam o caminho que o PSOE quer fixar para os impostos cedidos aos governos regionais. O objetivo é acabar com a competição predatória. Em outras palavras – embora não seja dito explicitamente no documento – se trata de acabar com a excepcionalidade de Madri, a única comunidade espanhola que não sobretaxa o imposto patrimonial e permite uma bonificação de 99% nos impostos sobre sucessões e doações. Os governos regionais socialistas, assim como reservadamente os do PP, se queixam há anos da política fiscal impulsionada pela então presidenta (governadora) madrilenha Esperanza Aguirre e agora defendida por sua sucessora Isabel Díaz Ayuso. “Os socialistas devem reconsiderar a tributação sobre a riqueza promovendo um processo de harmonização”, afirma o texto, citando a necessidade de “abordar conjuntamente a revisão do tratamento dos rendimentos sobre o capital no imposto de renda, para assegurar a adequada tributação dos contribuintes com maiores rendas e grandes patrimônios”.
O PSOE também defende a adoção de impostos que desestimulem hábitos poluentes. Mas adverte que os esforços para eletrificar a mobilidade, criar uma matriz renovável e elevar a eficiência energética “podem contribuir, se não houver uma abordagem socialista a estes debates (…), para erodir a coesão social e territorial”. Daí sua forte aposta “numa agenda urgente de combate à mudança climática que atente para os riscos distributivos que poderia ocasionar”.
Uma transição limpa e justa. Os socialistas se definiram formalmente como uma organização ecologista e feminista neste congresso. “O PSOE tem o coração vermelho, mas também verde, porque sente que é importante transformar a realidade atual em uma realidade diferente; muito mais justa, muito mais equitativa”, afirmou a ministra de Transição Ecológica, Teresa Ribera, em Valência. Frente à “irresponsabilidade absoluta” do ex-premiê conservador Mariano Rajoy, que, segundo os socialistas, “não considerou a segurança ambiental como um assunto de Estado”, o projeto encarnado por Sánchez confia em reduzir as emissões de gases do efeito estufa do conjunto da economia espanhola em pelo menos 23% até 2030. O Governo planejou os trabalhos de desmantelamento “gradual e ordenado” das instalações vinculadas à energia nuclear e as energias fósseis. A dependência espanhola por gás e petróleo já ficou clara na escalada de preços sem precedentes dos últimos meses: a conta de luz se tornou o principal problema do Governo, e ainda não se sabe se Sánchez conseguirá cumprir sua promessa de reduzir as faturas dentro de um ano e meio aos níveis semelhantes aos de 2018.
O Executivo destinará 37% dos 140 bilhões de euros (887 bilhões de reais) dos recursos europeus à busca por uma transição ecológica justa e por um modelo baseado em fontes renováveis. “O atual modelo de crescimento não serve”, afirma o texto categoricamente, enfatizando que neste processo de transformação será preciso combater as desigualdades e distribuir “de maneira equitativa” os custos da mudança de matriz. Consciente da disputa pela bandeira ambiental no seu flanco esquerdo (por parte dos partidos Unidas Podemos e Mais País), a presidenta do PSOE, Cristina Narbona, cobrou afinco do partido na luta contra a mudança climática. “Cada um de nós tem que ser um militante nesta tarefa e contribuir para que se veja o PSOE como o partido verde da esquerda”, afirmou há poucos dias a principal representante do ambientalismo no PSOE.
Potencializar as políticas feministas. A rejeição de parte do coletivo feminista ao uso das palavras gênero e sexo como sinônimos na apresentação provocou o debate ideológico mais intenso do 40º congresso. Ao final, o texto não foi substancialmente alterado nesta questão, segundo fontes socialistas. O mesmo ocorreu com o uso do conceito trans em lugar de pessoas transexuais. O partido alcançou um acordo na comissão sobre feminismo, e a declaração final do congresso respaldará a Lei Trans. O que ninguém contestou foi o compromisso de melhorar as condições trabalhistas das mulheres com um novo “modelo produtivo”. Nesta linha, o socialismo assume a “enorme responsabilidade de continuar promulgando leis e impulsionando políticas públicas que situem os direitos das mulheres como motor do fortalecimento das democracias, e como avanço nos direitos de cidadania”. Duas das metas são “avançar em uma incorporação e promoção menos segregada e estereotipada nos empregos” e implantar medidas transversais voltadas para elevar a taxa de emprego feminino.
O PSOE se comprometeu a fazer o esforço necessário para que esta legislatura aprove uma lei integral com vistas à proibição da prostituição. As fontes consultadas salientaram que para isso seria necessário um marco legislativo completo, pois não dependeria de uma só lei. Um exemplo seria a adoção de regulamentos municipais como medidas complementares à normativa a ser aprovada no Parlamento. O debate sobre a proibição da prostituição não era novo. A primeira vez que apareceu nas resoluções de um congresso do PSOE foi em 1976. “Confio em que este seja o congresso que de maneira definitiva abra a porta a essa abolição e ao final desta escravidão e da dominação histórica que a prostituição representa”, apelou neste sábado o ex-premiê José Luis Rodríguez Zapatero em sua intervenção. Na exposição, o PSOE propõe também “considerar o tráfico humano como um motivo justificado para solicitar asilo em nosso país”, tal como já ocorre com a perseguição por motivos de gênero, orientação sexual ou violência machista.
Mais avais para disputar primárias. Sánchez foi reeleito líder do partido nas primárias de 2017 apesar de ter a máquina partidária contra si. O secretário-geral do PSOE reconheceu o apoio da militância, decisiva para sua volta à sede da rua Ferraz, e o texto de encerramento do congresso partidário declara que com esse processo “se avançou de maneira decisiva no empoderamento da militância”. Embora o partido continue reconhecendo os militantes como “a base de todos” os seus avanços, decidiu aumentar o número de avais exigidos para apresentar uma candidatura nos processos internos. O propósito da reforma dos estatutos federais, aprovada na comissão de estatutos, é promover uma organização “cada vez mais forte e mais eficaz”. A proposta foi definida na quarta-feira em uma reunião na sede partidária em Madri com a presença de todos os secretários territoriais de organização. Até agora, para formalizar uma candidatura era necessário conseguir 1% das assinaturas dos filiados em nível federal, 2% para postular-se a um cargo partidário regional, e 3% no caso das províncias (subdivisões das comunidades autônomas). Essas percentagens subirão para 3%, 6% e 12% respectivamente. Sobre o modelo de partido, o ex-premiê Felipe González deixou um recado em sua fala deste sábado ao mencionar o direito à liberdade de opinião da militância.