Enfrentando o coronavírus

No “Nós por nós”, favela da Maré chega a uma das menores taxas de transmissão da covid-19 no Rio

“Alô, alô morador! Vai vacinar, morador! É até às 17h, vai lá na Clínica da família, na associação de moradores ou na escola mais próxima”, gritava uma voluntária em um megafone durante uma ação de mobilização numa tarde de 31 de julho, na Maré, um conjunto de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. O território foi o primeiro do gênero no Brasil a receber vacinação em massa contra a covid-19, numa campanha que contou com a parceria da ONG Redes da Maré, da Prefeitura do Rio e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Passados menos de três meses e milhares de vacinados, a Maré celebra uma das menores taxas de transmissão de covid-19 do Rio de Janeiro, como informou o secretário de Saúde municipal, Daniel Soranz, nesta sexta, 15. Até o dia 9 de outubro, o completo registrava 373 mortes por covid-19. Neste final de semana, um mutirão avançava com a segunda dose.

A Maré é um conjunto de 16 favelas que, juntas, são território para cerca de 140.000 pessoas. Fica às margens da Baía de Guanabara e atravessadas por três vias importantes do Rio: a Linha Amarela, a Linha Vermelha e a Avenida Brasil. É um bairro enérgico e frenético, com vasto comércio e circulação de pessoas. A Fiocruz deu início a um estudo no bairro com o mutirão de julho para avaliar o impacto da vacinação na população.

Os mais velhos já haviam começado a se vacinar. Mas os mutirões de vacinação da primeira e segunda dose acelerou a imunização entre os maiores de 18 anos que ainda não haviam vacinado. Cerca de 36.000 moradores tomaram a primeira dose nos mais de 130 postos disponíveis dentro da comunidade. O imunizante aplicado foi o da Oxford/AstraZeneca.

Para convencer os moradores em meio às desconfianças, centenas de moradores foram convocados para fazer o papel de voluntários e quebrar a resistência. Em todas as favelas, equipes da Redes da Maré se enveredaram pelas ruelas, becos e vielas conversando com quem estivesse passando. Divididos em duplas, os mobilizadores carregavam panfletos com informações de faixa etária, horário e postos de vacinação.

Os voluntários foram de porta em porta convidar para a vacinação. Quando não encontravam ninguém, colocavam os panfletos por debaixo da porta das casas. “Pelo menos quando a pessoa chegar em casa irá ver.” A falta de vacinação de alguns moradores chegou a ser abordada em tom de denúncia durante a campanha daquele sábado:PUBLICIDADE

— Ela não se vacinou.

— Não me vacinei ainda, mas vou —disse uma mulher com olhos de constrangimento e que estava aparentemente temerosa.

— Ouvi dizer que a vacina dá reação. E se eu morrer?

— Isso é normal, pode ser que dê ou não a reação —explica um voluntário.

As equipes foram formadas levando em consideração a familiaridade com o território a ser percorrido. “A ideia de construir uma rede de mobilização a partir de voluntários que vão trabalhar na área onde eles moram é de construir uma rede de afeto, confiança e, assim, criarmos uma rede de relacionamento”, explica Mariane Rodrigues, que trabalha na Redes. “Se você acorda de manhã, abre a janela e vê o seu vizinho com um megafone chamando para vacinar, isso vai criar um estranhamento que vai abrir a possibilidade da pessoa ouvir o outro”, defende.

Logo no começo da jornada daquele sábado de julho, um dos voluntários cumprimentava um homem de meia idade que está saindo de casa e pergunta se já foi vacinado. Ele responde que foi há alguns meses, mas pegou um panfleto e colou em uma parede. “Quem passa aproveita e dá uma olhada, não é uma boa?”, sugeriu o homem. Mais adiante, uma mulher comenta: “Tomei hoje e levei duas vizinhas”.

Uma das estratégias de comunicação para convencer os mais novos saiu da cabeça de um jovem morador. Em agosto, o Raphael Vicente, de 21 anos, virou sensação com um vídeo roteirizado por ele dentro da Maré, explicando por que era preciso continuar a usar máscara mesmo depois da primeira dose da vacina. Andando pelas vielas, Vicente pede para dar uma olhada no calendário de vacinação para colocar “a preciosa no braço”. Entra em cena uma moradora que fala: “Ah mas a Astra Zeneca causa efeito colateral, né”. Raphael então responde que são sintomas leves e fecha com humor: “Como diz o filósofo [ele mesmo], a paulada pode durar uma noite, mas a imunização chega pela manhã”.

Em alguns casos, o convite à vacinação não foi bem sucedido, com contrapartidas que repetiam as muitas notícias falsas disseminadas contra as vacinas no país. O imunizante “mata”, “não presta” e “por que tomar uma vacina que dá muita reação?” foram algumas das respostas.

Voluntário entrega panfletos sobre a vacinação contra covid-19 para os moradores da Maré.
Voluntário entrega panfletos sobre a vacinação contra covid-19 para os moradores da Maré.FERNANDO SOUZA


“Nós por nós”

Ainda em março de 2020, quando pouco se sabia sobre o coronavírus, lideranças de comunidades de diversos Estados participaram de uma reunião online para começar a montar uma estratégia de comunicação em favelas e periferias para informar sobre o coronavírus. Assim surgiu a Frente de Mobilização da Maré, uma união de coletivos de comunicação de base comunitária, que espalharam pela Maré cartazes e faixas com orientações aos moradores, além de um carro de som. “Por mais que a tecnologia esteja à mão, a gente ainda tem dificuldade do acesso à informação voltada, não só com a linguagem, mas também ao nosso povo da favela”, argumenta Naldinho Lourenço, fotógrafo e atuante na Frente. “Aqui é nós por nós, trabalhamos muito essa comunicação mais popular, mais próxima das pessoas”, diz.

Houve campanha por doações, e à medida que foram crescendo, foi trabalhada a segurança alimentar a partir da crise econômica que veio junto com a pandemia. “Percebemos que os movimentos que estavam acontecendo aqui na favela não iam dar conta da demanda das famílias, pessoas que sofreram com o desemprego, sem perspectiva de trabalho….’. Foi aí que iniciou um processo de reunir nomes e informações de pessoas em situação de vulnerabilidade.

Foram distribuída entre 2000 a 3000 cestas básicas por mês, no período de três a quatro meses atendendo essas famílias, impactando cerca de 12.0000 pessoas. Em novembro do ano passado, no entanto, as doações começaram a cair. A luta, segundo ele, segue para conseguir editais e doações para arrecadar fundos para continuar o trabalho. A vacinação em massa contra a covid-19, porém, é um alento na esperança de dias melhores, ainda que problemas antigos estejam presentes.

Homem recebe dose da vacina contra a covid-19 em clínica da Maré.
Homem recebe dose da vacina contra a covid-19 em clínica da Maré.FERNANDO SOUZA

‘Uma cidade dentro da cidade”

A história do bairro remonta ao início do século XX, com as primeiras habitações de pescadores no Morro do Timbau, à época a única região seca em meio ao mangue, explica o historiador e doutor em sociologia pela PUC-Rio Edson Diniz, que também é um dos fundadores da Redes da Maré. Além deles, uma empresa extraía pedras do Morro do Timbau para vender no Centro do Rio. A partir dos anos 1940, porém, a Maré começa a ser realmente habitada. “As pessoas começam a chegar na Maré porque era um lugar ainda com poucas habitações, que ficava relativamente próxima ao Centro da cidade, onde está o emprego, e próxima ao bairro de Bonsucesso, que tinha muitas fábricas e indústrias. Também começa a ser construída a Avenida Brasil e muitos trabalhadores vêm para Maré para ficar próximo ao trabalho”, completa Diniz.

A década também é marcada pelo início da construção da Universidade do Brasil, que hoje é a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O campus do Fundão começa a ser construído. Esse conjunto de obras, fábricas, a UFRJ, a construção da Avenida Brasil, vai facilitar a chegada dos primeiros moradores nos anos 40”.

O crescimento começa a ser expressivo nas décadas de 1950 e 1960, quando os próprios moradores começam a aterrar a Baía de Guanabara. Diniz comenta que o nome Maré decorre do fato da favela estar em cima da Baía de Guanabara. “Os primeiros moradores ocupam o morro e depois vão descendo para as áreas adjacentes. As primeiras habitações, até antes do aterro, são as palafitas, barracos de madeira, muito precários, fincados sob estapas no final da Baía”. O processo de aterramento vai sendo progressivo, seja pelo Estado, seja pelos moradores, para tornar a Maré um território plano.

Entre os anos 1980 e 1990, havia um projeto que ameaçava expulsar os moradores. É nesse contexto que surgem as associações de moradores. “Eles reivindicavam ficar no espaço e de ter melhores condições de vida, como água, luz, esgoto, escola, porque era tudo muito precário até os anos 1990”, explica. “Luta para ficar e luta para melhorar de vida. Isso vai atravessar a história da Maré e explica porque a Maré é tão organizada e se movimenta tanto”, ressalta. Com a vacinação contra a covid-19, virou referência outra vez.

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