A Islândia ficou por baixo aos olhos do mundo anos atrás e hoje se vê vitoriosa, acima de qualquer suspeita. Olha de cima os estarrecidos doutores economistas que a condenaram e desprezaram, mas que ainda viajam para cá e para lá carregando seus protocolos e ensinamentos ortodoxos ultrapassados de austeridade econômica para outros países.
Minha avó ensinava na cozinha a quem quisesse fazer boas comidas, particularmente bolos saborosos, fofos e de aparência inigualável, que nós crianças tanto queríamos, controlando com maestria os ingredientes. Desde o manuseio da massa, ao fermento adequado, à quantidade de ovos, à boa manteiga, ao cheiro ideal.
Vovó fazia o que hoje os economistas ortodoxos e austeros desconhecem por completo. Usava ela o conhecimento adquirido mexendo as panelas, sabia a dosagem certa, o tempo necessário e o melhor ponto. Mas fazia mais.
Ela já havia incorporado a arte de fazer bem o que era para dar bom resultado. Lembro-me hoje do filme mexicano Como água para chocolate que mostrava o ato de cozinhar bem com o sentimento de amor. Para cada tipo de comida o enredo sugeria amor, conhecimento, paciência e timing.
Tudo o que vovó já fazia e tudo o que os economistas ortodoxos e austeros e a Troika não fazem. Nem pensar. Claro que não é de se esperar amor nunca de um FMI, Comunidade Europeia (CE) ou Banco Central Europeu (BCE). Nem do Banco Mundial e correlatos. Mas conhecimento, paciência e timing seria o óbvio. E ululante segundo o velho Nélson Rodrigues!
Em lugar de amor, no entanto, cabe outra palavra poderosa mas nunca usada, solidariedade. Adicionar às cartilhas dessas instituições multilaterais pelo menos um pouco que resta de humanidade entre seus diretores presidentes e conselhos diretivos. Afinal elas pretendem ajudar os países e não afundar suas economias.
Em benefício dos bancos e dos banqueiros. O que seriam eles não fôssemos todos nós que depositamos nas instituições bancárias nosso dinheiro? Em troca desse sistema, no entanto, eles nos devolvem juros altos e condições draconianas de pagamento. E isto quando conseguimos empréstimos.
Pior, jogam com nosso dinheiro no mercado nos mais variados e arriscados expedientes e papéis, como os sub-primes no caso dos Estados Unidos, redundando na crise de 2008. E os governos até hoje acabam por socorre-los, a maioria esmagadora, com a desculpa de salvar as economias e os empregos, e quem paga? Nós os contribuintes.
Mas há pelo menos uma exceção, uma singular e preciosa exceção: a Islândia. País que é uma ilha, uma ilha que é um País, de tamanho próximo ao estado de Pernambuco e com população de pouco mais de 300 mil habitantes, enfrentou sua crise econômica de maneira soberana, altiva, juntos governo e habitantes, dispensando solenemente os palpites e interferências do sistema bancário internacional incluindo os caciques FMI, BCE e CE.
Exatamente para evitar comentários do tipo, ah!, mas a Islândia é pequena e pôde se dar ao luxo de fazer isto, é que cabe a observação: entre as espécies a dor de barriga é a mesma num elefante ou num gato, independentemente do tamanho do coitado. Assim como a austeridade ou a burrice nos ortodoxos.
A Islândia perdeu cerca de 8% de sua riqueza e um volume de emprego de 12%, magnitudes inéditas para o País, dois anos após a crise bancária de 2008. Rejeitou as medidas de austeridade aconselhadas na época pela Troika, em especial a CE, além de não socorrer seus bancos envolvidos no jogo financeiro, deixando-os ir à falência. Governo e população decidiram não tirar do bolso para o bolso dos banqueiros,
De 2011 em diante a Islândia revigorou sua economia principalmente a partir da indústria de alumínio, das exportações de pesca e do turismo. Hoje a ilha está muito bem obrigado, com desemprego entre 3% e 4% e um crescimento do PIB da ordem de 3,3%.
Ao contrário dos ensinamentos ortodoxos, a ilha continua mantendo controle de capitais desde 2008 limitando a circulação livre de dinheiro. A trava equivale ainda hoje a metade do valor do PIB. Não há espaço adicional para os jogos e expedientes financeiros de risco, somente para manter a circulação da moeda e financiar as atividades produtivas.
O próprio Presidente da ilha, Olafur Grimson, argumenta que a recuperação econômica de seu País se deveu ter dispensado as sugestões dos organismos multilaterais, a CE em especial, e ter contado com o apoio da população no exercício vigoroso da democracia.
Tanto o Presidente quanto minha avó souberam mais que a Troika administrar com eficiência nas suas especialidades o exercício de seus conhecimentos e habilidades. Cada qual combinou os devidos ingredientes econômicos, sociais e políticos de um lado e culinários de outro para chegarem juntos ambos a resultados auspiciosos.
O primeiro escutou seu povo e dele ouviu seus clamores, a segunda escutou seus comensais e deles ouviu suas preferências e desejos. Uma questão de humildade, despojamento e sabedoria. Saber ouvir e saber operar junto. Por trás de tudo, humanidade, maneiras de lidar com relações humanas.
Se o Presidente ou minha avó estivessem entre os economistas da Troika certamente fariam exatamente o oposto que é feito hoje na Zona do Euro. Em particular com a Grécia, Portugal, Espanha e Itália. Pelo menos os dois têm históricos de sucesso, coisa que os outros não lograram.
Senão, como é que o receituário de austeridade e ortodoxia ainda não deu resultado até agora em nenhum desses países? Ao contrário, os países sofrem há tempos com desemprego, quedas no PIB, reduções de vendas e produção sem que os ajustes fiscais draconianos pretendidos pela Troika tenham dado os resultados preconizados.
Que o Brasil se espelhe na Islândia e mostre sua capacidade de reagir sem sacrifícios desnecessários e injustos. Basta deixar a cartilha da Troika seguida pela Fazenda e ir no rumo da Islândia. Um acordo entre governo, empresas e população pode levar a economia de volta ao crescimento com justiça social.
Como já dito por outros diversas vezes, não se trata de simples ajuste da caixa do governo, mas de acerto entre governo, empresas e população. A Troika quer salvar os bancos, não os países. Com certeza o Presidente da Islândia ou minha avó, assim como as demais vovós de nossos leitores, fariam muito e bem melhor. Pelo menos com mais solidariedade e menos arrogância.
Fonte: Carta Maior.