Alguns ensinamentos que a vitória popular na eleição presidencial do Peru nos traz
Por Jair de Souza*
O candidato socialista Pedro Castillo acaba de vencer o segundo turno das eleições presidenciais no Peru, disputando contra Keiko Fujimori, a candidata da extrema direita peruana e filha do ex-ditador Alberto Fujimori.
Reagindo de modo similar ao que vem ocorrendo nos últimos anos com os direitistas quando são derrotados nas eleições, Keiko Fujimori passou a levantar suspeitas de que houve fraude no processo eleitoral.
Porém, todos sabem, e ela mais do que ninguém, que os únicos que teriam condições de fraudar as eleições no Peru são aqueles que estão inteiramente alinhados com a candidatura da própria Keiko Fujimori.
As organizações que apoiam a candidatura de Pedro Castillo estão inteiramente fora da máquina do Estado peruano.
Não passa de uma demência ou pura má fé imaginar que uma força política completamente alheia às instituições do Estado, sem contar com ninguém de sua filiação em nenhum cargo de relevância nos órgãos institucionais, possa ter influência determinante sobre os resultados eleitorais.
Mas, já sabemos, há quase uma década, a justificativa direitista para suas derrotas passou a ser esta.
É o que explica a decisão de Aécio Neves de alegar fraude e tentar inviabilizar a vitória de Dilma Roussef. Juan Guaidó agiu de igual forma na Venezuela ao ser derrotado por Maduro.
Os golpistas bolivianos também se insurgiram contra a vitória de Evo Morales alegando fraude.
Mais recentemente, o comandante da direita mundial, Donald Trump, em face de sua derrota em sua tentativa de se reeleger nos Estados Unidos, não poupou palavras para insinuar que a eleição tinha sido fraudada.
Aqui no Brasil, Bolsonaro já colocou a palavra fraude na ordem do dia para justificar antecipadamente sua mais do que provável derrota eleitoral em 2022.
Mas, deixando de lado esta questão do esperneio já esperado da extrema direita diante de seu fracasso eleitoral, precisamos passar a limpo os acontecimentos do Peru e, a partir de sua compreensão, retirar os ensinamentos que nos ajudem a encontrar maneiras para fazer valer os direitos e interesses das maiorias populares em processos complicados.
A primeira grande lição que devemos assimilar é a de que, em última instância, as forças do capital sabem muito bem onde jogar suas fichas nos momentos em que seus interesses de classe são colocados em risco.
Portanto, não foi por acaso que o conjunto da burguesia, seja a do agronegócio, seja a do comércio, seja a da indústria, seja a da intelectualidade, ou seja, a burguesia em sua totalidade se esqueceu por completo de suas diferenças em relação à figura de Keiko Fujimori e de seu clã, e não titubeou em se alinhar solidamente com as hostes do fujimorismo no intuito de eliminar a ameaça que o movimento liderado por Pedro Castillo representava.
Em outras palavras, a burguesia demonstrou que seus interesses de classe estão acima de certas picuinhas comportamentais, as quais podem ter sua importância em tempos em que os riscos maiores não estão presentes, mas não podem ser priorizadas quando um inimigo maior precisa ser abatido.
Portanto, seu comportamento na campanha presidencial deixou claro o que já deveríamos saber de antemão.
Outra importante conclusão que podemos extrair é a de que a presença constante dos integrantes das organizações progressistas junto às bases sociais é condição indispensável para que as mesmas possam desenvolver um trabalho eficiente que não permita que as forças políticas do capital e do atraso consigam isolá-las dos setores populares que devem representar.
Na tentativa de impedir a eleição de um candidato sintonizado com as aspirações do povo trabalhador, as elites oligárquicas e pró-imperialistas descarregaram todo seu poder de fogo sobre a figura que simbolizava seu inimigo principal no momento: Pedro Castillo.
E assim, aquele tipo de arsenal diabólico do qual os brasileiros já tínhamos sido vítimas nas eleições de 2018, quando Lula e o PT foram os alvos a serem atingidos, foi arremessado contra Pedro Castillo.
Todos os grandes meios de comunicação corporativos se lançaram numa campanha inteiramente articulada que, ao mesmo tempo que buscava redesenhar positivamente o nefasto passado de repressão e corrupção que caracterizava Keiko Fujimori, se dedicava a difamar o candidato popular e a semear dúvidas entre a população sobre sua sinceridade de propósitos.
Concomitantemente, a campanha de agressão, distorção e desinformação através das redes sociais (Whatsapp, Facebook, Twitter, Instagram, etc.) ganhou proporções gigantescas.
Em sintonia com o já exposto e de modo análogo ao que já haviam feito recentemente na Bolívia, agentes relacionados com igrejas neopentecostais (muitas delas filiadas a matrizes brasileiras) também entraram em campo para demonizar o candidato popular e suas propostas, tratando de induzir seus seguidores a optar pela neofascista Keiko Fujimori.
Pode parecer incrível, mas a verdade é que, apesar de todo esse monstruoso acúmulo de forças malignas atuando contra, as organizações populares conseguiram resistir e alcançar uma vitória das mais retumbantes, muito mais significativa ainda devido à enorme desproporção das forças que estavam em disputa.
O êxito dos setores populares nesta luta tão desigual só pode ser explicado pela inserção da militância progressista no conjunto do povo a quem tratava de representar.
Diferentemente do que tinha ocorrido no Brasil de 2018, quando o PT e as demais organizações de esquerda tinham abandonado em boa medida o trabalho de base junto às comunidades trabalhadoras, os militantes do movimento pró Pedro Castillo estavam ali, junto do povo ao qual diziam representar.
Talvez, lhes faltassem algo de embasamento teórico, mas eles estavam lá.
Logicamente, o uso das redes sociais tem um papel importante no convencimento político na atualidade.
Mas, nem de longe o uso dessas redes sociais pode exercer o mesmo grau de convencimento que o contato pessoal regular e constante.
Embora alguns creiam que as principais responsáveis pela eleição de Bolsonaro tenham sido as descargas em massa de mentiras e desinformações feitas através do Whatsapp, poderíamos garantir que, sem a onipresença junto às massas do povo de igrejas e pastores que reproduziam e endossavam o teor de tais mensagens, o desfecho do processo não teria sido o mesmo.
Em resumo, do processo eleitoral peruano e da vitória de Pedro Castillo contra todas as correntes oligárquicas que apoiavam Keiko Fujimori, fica-nos a convicção de que o trabalho de base continua a desempenhar um papel crucial no processo de luta das organizações políticas de esquerda.
Ainda que na atualidade não se deva menosprezar o uso das redes sociais com seu imenso alcance, precisamos ter clareza de que o contato pessoal permanente do militante progressista com seu povo vai ser sempre o fator determinante para que o poder do capital não imponha sua visão de mundo e faça valer sua vontade a despeito dos interesses e necessidades das maiorias.
*Economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ