Palestinos rejeitam cobertura ‘desumanizada’ de confrontos com Israel

Diogo Bercito
WASHINGTON

Na rede americana CNN, uma repórter pergunta ao vivo para o palestino Muhammad al-Kurd se ele apoia “os protestos violentos” em Jerusalém. Sem titubear, ele rebate: “Você apoia a desapropriação violenta da minha família?”. Quando ela pergunta o que ele sente em relação a um possível despejo, Kurd discorda da palavra: “Não é despejo, é expulsão étnica”.

Nos últimos dias, com a crescente tensão em Jerusalém, palestinos como Kurd têm usado entrevistas e redes sociais para protestar contra a forma como a imprensa tem retratado a crise. Kurd também reclamou no Twitter, por exemplo, de que a sua fala ao jornal americano The Washington Post foi editada, deixando de fora palavras que para ele são fundamentais: colonialismo e ocupação.

Parente de palestino lamenta morte de jovem durante funeral no norte da Faixa de Gaza, na cidade de Beit Hanoun
Parente de palestino lamenta morte de jovem durante funeral no norte da Faixa de Gaza, na cidade de Beit Hanoun – Yasser Qudih/Xinhua
Não é de hoje que palestinos acusam jornalistas de não entender a situação. Mas essa questão veio à tona com força nesta semana. A família de Kurd está em vias de ser expulsa do bairro palestino de Sheikh Jarrah pelo governo israelense, caso a Suprema Corte confirme decisão de primeira instância.

Os protestos contra a medida se espalharam pela cidade —intensificados pela incursão da polícia israelense na mesquita de al-Aqsa, a terceira mais sagrada do islã, deixando centenas de feridos.

Em seguida, a facção radical palestina Hamas disparou foguetes contra Jerusalém, deixando dois mortos, segundo as autoridades israelenses. Israel revidou com bombardeios aéreos na Faixa de Gaza, causando a morte de 28 pessoas, incluindo dez crianças, segundo o Hamas.

Quando o jornal americano The New York Times noticiou esses eventos, escreveu em sua manchete que “militantes de Gaza dispararam foguetes, e a polícia israelense lutou contra manifestantes palestinos em Jerusalém”. No Twitter, palestinos protestaram dizendo que o título dava a entender que os foguetes precederam a violência policial, invertendo assim a ordem dos fatos.

“Isso está acontecendo há anos”, diz a franco-palestina Inès Abdel Razek, diretora da organização Rabet. “A imprensa retrata a situação como se esse fosse um conflito entre duas partes que não conseguem entrar em acordo, mas essa abordagem é problemática. Palestinos vivem hoje sob a soberania de Israel como cidadãos de segunda classe, com menos direitos.”

As casas de Sheikh Jarrah foram construídas em 1956 pela Jordânia, que controlava Jerusalém Oriental, para famílias palestinas refugiadas. Israel tomou o território em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias.

Depois disso, grupos israelenses começaram a se mudar para lá. Disseram que tinham comprado aqueles terrenos no século 19, algo contestado por palestinos. A Justiça israelense acatou alguns desses pedidos e começou a expulsar famílias. A última vez aconteceu em 2009.

Uma das críticas recorrentes de pessoas como Abdel Razek é de que jornais —que seguem a norma de sempre ouvir os dois lados de uma disputa— acabam criando sensação de falsa equivalência. “Colocam os foguetes disparados pelo Hamas e o bombardeio pesado da população de Gaza como se estivessem no mesmo nível”, diz. “Isso acaba apagando a estrutura de poder.”

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A situação, afirma ela, não é exclusiva do contexto palestino. Há um paralelo com a forma como a população negra é por vezes retratada nos EUA —um dos elementos que motivou a onda de protestos Black Lives Matter, em 2020. “Palestinos, como negros, são desumanizados. Quando reagimos, a mídia fala em ‘embates’ e ‘tensão’, mas é uma repressão violenta de manifestantes.”

Uma das soluções, para Abdel Razek, é os veículos de mídia passarem a colocar vozes das comunidades palestinas em maior evidência —como alguns têm tentado fazer com populações negras nestes últimos meses. Ouvi-los não só como vítimas, mas também como analistas, e não apenas de questões raciais.

Não se trata de ignorar que o Hamas é uma milícia radical, considerada terrorista pelos Estados Unidos e por Israel. Tampouco de deixar de noticiar seus ataques, como o que atingiu uma escola israelense nesta semana. A questão, para os palestinos descontentes com a imprensa, é ter empatia também pela situação que eles vivem. Esse tipo de discurso ecoa o que tem sido dito no Brasil, no caso do massacre policial de Jacarezinho, em que ao menos 27 pessoas foram mortas pela polícia.

“Os palestinos foram desumanizados durante décadas, e agora nós estamos tentando mudar isso. Principalmente os jovens, que estão retrucando. A imprensa apenas se interessa pela gente quando há rompantes de violência. Mas nós vivemos a violência todos os dias”, afirma Abdel Razek.

“Palestinos só aparecem na imprensa quando lançam pedras, quando estão com raiva, quando são uma massa de pessoas. Nunca retratam nossas histórias, personalidade, sentimentos.”

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