Por José Carlos Garcia* e Cláudia Maria Dadico**
A palavra chauvinismo significa, segundo os dicionários, uma forma agressiva e fanática de patriotismo. Por extensão, passou a designar toda forma de defesa exacerbada ou violenta de nacionalidades, grupos, etnias ou ideias, comumente acompanhada de desprezo por minorias. A expressão deriva do nome de um soldado de Napoleão Bonaparte, Nicolas Chauvin, que, mesmo várias vezes ferido e mutilado, seguiu lutando pelo exército francês.
Como a vida não pode ser corretamente compreendida sem doses generosas de ironia e sarcasmo, mesmo nas maiores e mais chocantes tragédias, quis a História que o assassino de George Floyd, quase duzentos anos depois de Napoleão, se chamasse Derek Chauvin.
Durante intermináveis 8min46’, ele manteve, mãos nos bolsos e ar despreocupado, o joelho sobre o pescoço de Floyd e os ouvidos cerrados às suas súplicas por ar para respirar. Em um surpreendente e pouco comum veredito, fruto das maiores mobilizações antirracistas dos EUA desde a campanha pelos direitos civis, nos anos 1960, o júri considerou o policial Chauvin culpado por três acusações ligadas ao homicídio, o que pode levá-lo a uma pena de até 40 anos de prisão.
O assassinato de Floyd, infelizmente, não é uma exceção. Segundo o jornal Washington Post, 1.014 pessoas foram mortas a tiros pela polícia nos EUA, em 2019. A ampla maioria, negra. O que deu enorme projeção ao caso foi a filmagem de todo o crime, os apelos desesperados da vítima por ar e as imensas mobilizações por justiça nos EUA.
Violência racial
Nem lá, nem no Brasil, nem em lugar nenhum do mundo, a violência racial, especialmente contra negros – mas também contra outras “minorias”, como indígenas, judeus, árabes, latinos etc. – é novidade. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o índice de letalidade decorrente de ações oficiais das Polícias Militares no Brasil subiu de 0,8 para 1,8 por 100 mil habitantes entre 2015 e 2019, com destaque para os estados de Goiás e Pará.
Se o foco for a letalidade decorrente das ações de policiais civis e militares em serviço ou não, o índice sobe para alarmantes 3,4 por 100 mil habitantes no Brasil (e assombrosos 11,4 no RJ!), apenas no ano de 2019. A imensa maioria das vítimas de crimes violentos é negra. Segundo o Atlas da Violência 2020, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos. A taxa de mortalidade violenta de mulheres negras é de 5,2 para cada 100 mil habitantes, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras.
O que esse conjunto brutal de dados nos revela é que nossas polícias continuam presas a uma ação de capitães do mato, os especialistas em buscar e matar exemplarmente os “negros fujões”, e que, no contexto de fragilização democrática e ascenso de políticas neofascistas (no sentido de Boaventura e Agamben), estas ações ancestrais derivadas do escravagismo são refuncionalizadas como técnicas de contenção de massas pobres, normalmente pretas, mantidas fora do sistema legal de garantias.
O Brasil chora uma legião de negros e negras mortos, muitos em operações policiais, revelando que as ações proibidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 635, mas que seguem ocorrendo normalmente, são uma triste e comum prática oficial daquelas corporações, que parecem oscilar entre não se importar com esses mortos e não saber como agir de outro modo.
Assassinatos
Em abril de 1979, Marli Pereira Soares (Marli Coragem) personificou a dor de tantas mulheres negras, ao denunciar a morte de seu irmão pela Polícia Militar de Belford Roxo. Anos mais tarde, seu filho também foi assassinado pela polícia. Cláudia Ferreira da Silva, 48 anos, foi assassinada no Morro da Congonha, em 16/03/2014, segurando dois copos de café, e teve seu corpo arrastado pela viatura policial por mais de 300 metros; Jonathan de Oliveira Lima, 19, foi morto com um tiro pelas costas por policiais da UPP de Manguinhos, no Rio, em Manguinhos, em 14/05/2014; Maria Eduarda Alves, 13, morreu com um tiro disparado pela polícia quando participava de uma aula de Educação Física, no pátio da escola em que estudava, em 30/03/2017; Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, 26, foi abatido em 17/09/2018, porque a PM confundiu o guarda-chuva que tinha na mão com uma arma; Ágatha Félix, 08, levou um tiro de fuzil nas costas dentro de uma Kombi em que estava com sua mãe, em 20/09/2019, no Complexo do Alemão; Kauan Alves de Almeida, 16, foi morto pela PM durante um baile funk, em 25/12/2019, na favela Alba, em São Paulo; João Pedro Mattos, 14, foi morto pela polícia dentro de casa, em São Gonçalo, enquanto brincava com amigos, em 18/05/2020. Em Salvador, Bruno Barros, 29, foi torturado e assassinado, presumivelmente por traficantes, junto com seu sobrinho, Yan Barros, 19, acusados de furtar carne em um supermercado, no dia 26/04/2021. Os seguranças do supermercado teriam ameaçado entregá-los a traficantes, que os matariam. Uma amiga de Bruno disse que ele, pressentindo que seria morto, pediu à amiga, “chame a polícia para me prender”. Um apelo desesperado pela proteção do Estado, mesmo que essa proteção viesse sob a forma de punição. A carne de Bruno e Yan, entretanto, não valia tanto quanto a carne que eles pareciam querer furtar. Como canta Elza Soares, a carne mais barata do mercado é a carne negra.
E se, ano após ano, as balas parecem encontrar sempre os mesmos corpos, cabe perguntar, com Lélia Gonzalez (Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira), não como se chegou a esse estado de coisas, mas porque é que a gente nunca saiu dele.
Racismo
Assim como no filme Dois estranhos (2020), de Travon Free, vencedor do Oscar de melhor curta-metragem deste ano, que termina com o nome de algumas vítimas do racismo nos EUA, este artigo trouxe os nomes de algumas das milhares de vítimas negras da violência no Brasil, cujas trajetórias podem ser vistas em filmes como Relatos do front (2018), de Renato Martins, ou Auto de resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho, dentre tantos.
Direitos não são fórmulas abstratas para figurarem em textos e lápides. São referências abstratas para a relação entre pessoas concretas, para regular a vida real, para assegurar dignidade e justiça. Dependem de sua previsão formal, mas principalmente do que Konrad Hesse chamava de vontade de Constituição – uma vontade que só se concretiza nas ruas, nos protestos, na exigência, na visibilidade. Só assim garantiremos não apenas a condenação de um Chauvin, mas o fim de toda forma de chauvinismo.
*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Artigo publicado no Brasil de Fato