Por Rosilene Corrêa*
A escola é um espaço de disputa de poder. A educação no Brasil nasceu restritiva, visando à reprodução do mundo que garante o racismo, o patriarcalismo, a violência, o seguimento às ordens dos economicamente mais fortes; a normalização da estrutura social descrita pela existência da elite do conhecimento e a plebe ignara. A educação para o povo é um evento contemporâneo, e só passou a ser direito de todos e dever do Estado com a redemocratização do Brasil, em 1988. E incomodou quando, em um passado recente – que parece mais distante que nunca – negras e negros, filhas e filhos de operários, começaram a ocupar escolas e universidades. Logicamente porque naquela conjuntura, a tal disputa de poder contava com um novo contrapeso: o do povo com acesso à educação e, consequentemente, com direito a sonhar e questionar. Com a indignação obscena daqueles que tinham ameaçados seus espaços de poder, os acontecimentos da última meia década – desprovidos de eventualidade – tomaram rumos indomáveis, realizados em velocidade recorde. E a educação, mais uma vez, se mostrou como central na disputa de qual mundo se quer construir e para quem.
Acontece que a estratégia para esfrangalhar a educação que transforma nem sempre se mostra escancarada. Muitas vezes ela está inserida na ausência do fazer. É o que acontece no Distrito Federal há cerca de sete anos. Como um dos exemplos, está a estagnação da oferta do ensino em tempo integral aos estudantes das escolas públicas, encampado fortemente no DF durante o governo Agnelo Queiroz.
Uma das 20 metas traçadas no Plano Nacional de Educação, o ensino em tempo integral implica na permanência dos alunos nas escolas por mais de sete horas diárias durante todo o ano letivo. Para isso, exige-se também a adaptação dos espaços escolares, com a oferta de “quadras poliesportivas, laboratórios, inclusive de informática, espaços para atividades culturais, bibliotecas, auditórios, cozinhas, refeitórios, banheiros e outros equipamentos, bem como da produção de material didático e da formação de recursos humanos”, como versa o PNE. O que se objetiva com a proposta é tornar de acesso público o que é reservado, quase que com exclusividade, para crianças e adolescentes que descendem de famílias ricas, como aulas de música, de informática, de natação, de teatro e tantas outras áreas que definem a construção do cidadão em todas as suas dimensões.
Também foi escanteado o projeto Educação em Movimento, que insere na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental a figura da/o professora/or de Educação Física. A proposta do projeto é qualificar o processo de ensino-aprendizagem a partir da realização de jogos, brincadeiras e toda cultura corporal. O Educação em Movimento é fruto de plenárias realizadas em 2011, também durante o governo Agnelo Queiroz, com a participação de professoras/es e orientadoras/es educacionais da rede pública de ensino. Mas infelizmente foi paralisado nos governos subsequentes ao do petista. Longe de ser apenas mais um projeto estancado, a falta do fazer, neste caso, indica negligenciamento das culturas das crianças, da reprodução de suas realidades, expressas também em suas ações psicomotoras.
O sonho de se qualificar e se aperfeiçoar profissionalmente no exterior também foi inviabilizado após o término da gestão petista. Em 2013, Agnelo lançou o programa Brasília sem Fronteiras, que proporcionava a estudantes de escolas públicas e servidores públicos a oportunidade de realizar intercâmbio cultural em outros países. Com isso, se almejava não apenas a perspectiva de mudança na vida individual dos participantes, mas sobretudo o reconhecimento do DF e do Brasil como o país que investe em educação, inovação e tecnologia. Aliás, o DF foi a primeira unidade da Federação a colocar em prática um programa deste tipo. E embora o potencial da iniciativa, os governos que assumiram a principal cadeira do Executivo local a partir de 1º de janeiro de 2015 não levaram o Brasília sem Fronteiras em frente.
O desinvestimento financeiro no setor da educação pública também está no pacote de estratégias silenciosas – mas fatais – para retomar com força a configuração de uma educação excludente. Enquanto o governo Agnelo pode ser lembrado pela construção de creches, pela extinção total de escolas públicas de madeira e pela consagração do DF como primeira unidade da Federação a receber o selo “Território Livre do Analfabetismo”, os governos que vieram após a gestão do PT ficarão para sempre marcados pelo calote à categoria do Magistério Público e demais carreiras do funcionalismo, pela implantação das escolas militarizadas, pela extinção de turmas e turnos da Educação de Jovens e Adultos oferecida pela rede pública de ensino. Aliás, bastou dois anos de governo Ibaneis Rocha para que o DF perdesse o selo de unidade da Federação livre de analfabetismo.
Um terceiro caminho utilizado por governos que não têm interesse na educação emancipadora é o ataque frontal aos servidores públicos deste e demais setores do funcionalismo. Sob os falsos argumentos de “caixa deficitário” e “inchaço da máquina pública”, as políticas ditadas por Michel Temer e Jair Bolsonaro foram aplicadas sem pudor no Distrito Federal. Ajustes fiscais, retirada de direitos dos trabalhadores, questionamento à eficácia e eficiência dos serviços públicos fizeram com que a luta que antes era travada pela ampliação de conquistas, fosse agora realizada com o objetivo de não perder o que está garantido inclusive na Constituição Federal.
Depois da reforma trabalhista, da reforma da Previdência, de leis e Propostas de Emenda à Constituição que resultaram numa avalanche de prejuízos generalizados, o exemplo mais recente de tentativa de destruição da educação e dos serviços públicos é a reforma administrativa, de iniciativa do governo Bolsonaro-Guedes. A proposta, apresentada na PEC 32, repassa os serviços públicos para a iniciativa privada. Para isso, mina o Regime Jurídico Único e apresenta um esboço de novo regime jurídico que, de pronto, acaba ou fragiliza direitos históricos como estabilidade, aumentos retroativos, adicionais e progressão por tempo de serviço.
Na realidade, todas essas estratégias adotadas para enterrar de uma vez por todas a proposta da educação que transforma estão ancoradas no avesso da democracia. Não a democracia que preza exclusivamente pelos direitos individuais e pela oportunidade de eleger representantes políticos. Mas a democracia que se nutre da existência coletiva, do pensamento crítico, da diversidade, do desenvolvimento e compartilhamento do conhecimento. Da democracia que qualifica a informação para resistência a opressões, que não se conforma com a sociedade autoritária, que aprende a cada dia com as mais diversas formas de cultura; que promove a participação política. Uma democracia que faz conexões diretas com a educação pública, laica e universalizada. O objetivo do assalto à democracia via desmonte da educação e dos serviços públicos é silenciar, desesperançar, naturalizar o inaceitável para amordaçar quem ousar abalar a estrutura pavimentada pela acumulação de riquezas de poucos e a miséria extrema de muitos.
Se os ventos sopram raivosos contra o velejar rumo à democracia, é preciso que tomemos, nós o povo brasileiro, o leme da embarcação. O DF e o Brasil que já cruzaram mares para fortalecer os serviços públicos, sobretudo a educação, agora ameaçam naufragar infames, levados por ondas reacionárias assustadoras e arrasadoras, mas não intransponíveis. Lutemos!
*Rosilene Corrêa é vice-presidenta do PT-DF