Por André Nepomuceno
Doutor em Teoria da Literatura pela UNB e diretor da Fetec-Cut/Cn
É difícil catalogar os absurdos do capitão presidente, cuja carreira política começou após a pena de aposentadoria aos 33 anos, por indisciplina militar e terrorismo. Tentarei o desafio.
A pandemia pôs uma lente sobre dezenas de milhões de paupérrimos, para os quais tudo falta. No entanto, o capitão diz que o brasileiro é forte: resiste ao pé no chão, à água suja e ao esgoto a céu aberto.
A percepção dessa miséria traz um quê a mais de hipocrisia na onda de filantropia, pois a sensação é de que, sem a Covid-19, os menos favorecidos – ou mais humildes – como dizem as elites – ficariam no subsolo.
A solidariedade é louvável, mas não o é governo insinuar a caridade em lugar do direito às políticas de assistência social e às políticas públicas, das quais corta verbas e estruturas. Até mesmo o SUS é desprestigiado, a despeito de sua importância ressaltada durante a pandemia.
Ao minimizar a Covid, o presidente transferiu a governadores e prefeitos a responsabilidade pela crise sanitária e pela crise econômica a ela correlacionada, numa atitude que politizou a falsa dicotomia entre preservar vidas ou a economia, confundiu a população e causou diretamente tantas mortes.
Quanto à economia, não dá para fugir: sua política é a de cortes de gastos e investimentos públicos. A cruel reforma da previdência teve o dito papel de abrir espaço fiscal – com a função implícita de garantir a liquidez da dívida pública para o mercado –, mas longe de qualquer retorno social que compense, e a reforma trabalhista é aprofundada com mais retirada de direitos, sob o discurso do estímulo patronal pela redução de custos; no entanto, o desemprego explode, com a informalidade e os sem renda.
Na política, o capitão encena o mito do herói vítima dos maus, que conspiram para tirá-lo do poder e, portanto, isso motivaria uma intervenção militar. Nesse tom, incita a polarização maniqueísta desde 2018 e joga para o eleitorado cativo, em detrimento do conjunto da sociedade. Ou seja, divide para reinar, enquanto de fato ataca a Constituição, o patrimônio e a soberania nacionais em obediência aos donos do dinheiro e aos EUA.
Neste contexto, é intrigante que mantenha significativo apoio na sociedade. Estranhamente, os autoproclamados cidadãos de bem – dos quais os mais estridentes costumam ser brancos da classe média e alta – cultuam-no incondicionalmente e vibram com a deterioração nacional.
Aqui, arrisco uma analogia com a paródia do nosso “belo quadro social”, que Raul Seixas já cantava em “Ouro de Tolo”(1973)*. Na letra, o dito cidadão respeitável agradece ao Senhor pelo progresso, o emprego, o apartamento e o automóvel. Depois, em dupla face, problematiza a autoilusão e a cumplicidade com a ordem:
“É você olhar no espelho/Se sentir um grandessíssimo idiota/Saber que é humano, ridículo, limitado/que só usa dez por cento de sua cabeça animal/E você ainda acredita que é um doutor, padre [pastor]**ou policial/Que está contribuindo com sua parte para nosso belo quadro social…”
O artista já ironizava o conformismo da classe média beneficiada economicamente pela ditadura militar, enquanto esta perpetrava crimes de Estado contra os que defendiam as liberdades democráticas e entretinha as massas com o ufanismo.
Hoje, o governo eleito ensaia reeditar o autoritarismo, com modificações. O mito, que se diz patriota acima de tudo, viola garantias constitucionais e aparelha o Estado, a ponto de tentar impor à polícia federal e a órgãos de controle a proteção de sua família – acusada de vários crimes – e a perseguição de inimigos. A propósito, inimigos são todos os que discordam.
No plano do comportamento, uma das diferenças é a vulgaridade do líder, refletida no ódio destampado pelos respeitáveis adoradores, os quais, longe de reconhecer ou questionar o quadro social, cabe repetir, gozam com sua destruição sem nem mesmo terem vantagens objetivas – o que revela um bizarro sadomasoquismo.
Voltando à economia, diante da gravíssima crise, superposta à grave recessão de 2019, o governo foi forçado – por proposta da oposição, assumida pelo Congresso Nacional – a conceder o auxílio-emergencial de R$ 600,00.
Naturalmente, a popularidade aumentou. O disfarce de benfeitor alimenta seus delírios de poder e a reeleição em 2022.
Enfim, é árduo classificar os desatinos e os crimes de responsabilidade cometidos à custa de 146 mil mortes. Como chamar quem ignora a vida e a miséria, mas se traveste de pai dos pobres e utiliza o auxílio inesperado como moeda para comprar incautos, canalhas e insensatos?
Por ora, creio que os fatos listados ratificam o nome do mal: Bolsonaro.
Só nos cabe combatê-lo, sim, em nome da nação brasileira.
* https://www.letras.mus.br/raul-seixas/ouro-de-tolo Todo o disco Krig-ha, Bandolo! (1973) é antológico, vale a pena (re)conferir.
** Incluí ‘pastor’, ante ao grande crescimento de evangélicos no país de lá para cá.