Não há alternativa diante do novo 7 a 1 do Brasil na proporção de casos diários
Os sábios revoltosos de maio de 1968, na França, recomendavam: “Sejamos realistas, peçamos o impossível”. No Brasil da Covid-19, meio século depois, parece impossível pedir “lockdown”, mas um mínimo senso de realidade deveria exigir exatamente isso.
Tal foi a conclusão da conversa promovida na quarta-feira (12) pela iniciativa Infovid. Os debates do grupo de saúde pública sobre o novo coronavírus são liderados por Natalia Pasternak e Paulo Lotufo, muito ouvidos sobre a pandemia.
Pasternak e Lotufo convidaram para a discussão Denise Garrett, vice-presidente do Instituto de Vacinas Sabin (EUA). Antes, a médica brasileira acumulou 23 anos nos Centros de Controle de Doenças (CDC), órgão de reputação mundial em epidemiologia (até cometer erros crassos nesta pandemia).
Garrett está alarmada com a situação brasileira, talvez por não se intoxicar nas cortinas de fumaça tóxica que cegam o público nacional. Ela recomenda parar tudo, dar o “reset” prescrito pela OMS (Organização Mundial da Saúde) duas semanas atrás.
A especialista partiu de um critério exigente para controle da epidemia, não mais que um caso novo por dia a cada 100 mil habitantes (alguns estados americanos adotam 5 casos/dia/100 mil). Por essa métrica, estamos lascados.
A média mundial anda por 3,3 casos/dia/100 mil –fora de controle, pelo critério estrito. Médias de conjuntos amplos, no entanto, servem mais para obscurecer situações dramáticas que aparecem conforme se caminha para um lado e outro da curva de distribuição.
O Brasil é um desses desgarrados: 21 casos novos por dia por 100 mil habitantes. Sete vezes o escore mundial, o novo 7 a 1 (como escrevi num tuíte há poucos dias, mas em referência ao total de casos).
O país ganha dos dois outros campeões em números absolutos de Covid-19.
Os EUA de Donald Trump, com 56 mil novas infecções pelos dados de sexta (14), ostentam 17 casos/dia/100 mil. A populosa Índia de Narendra Modi, com 65 mil casos, tem menos de 5/dia/100 mil.
O número geral brasileiro também esconde profundas disparidades regionais. Nordeste (19,5) e Sul (20) estão próximos da média nacional (21). Em contraste, três regiões se afastam dela: Sudeste (17,6), Norte (24,9) e Centro-Oeste –pasme– com 38,5.
Por unidade da Federação, não por acaso um dos escores mais chocantes está no Distrito Federal: 65,9 casos/dia/100 mil. Ali se acha o epicentro do negacionismo epidêmico.
São Paulo exibe 21,6, e um pouco menos na capital (19).
Diante disso, para Denise Garrett, nem faz sentido pensar em abrir escolas. Bares, shoppings e academias é que deveriam estar fechados. Primeiro é preciso controlar a epidemia.
“Lockdown” rigoroso, por 4 a 6 semanas, no máximo 8. Aí sim daria para fazer o que nunca fizemos direito aqui: testagem em massa, rastreamento de contatos e quarentena.
Com 40 mil-50 mil habitantes infectados a cada dia, como rastrear todas as pessoas que estiveram com eles? Se forem dez por caso novo, seria preciso identificar, localizar e, de preferência, testar 400 mil-500 mil pessoas. Por dia.
São Paulo, estado mais rico, consegue realizar 40 mil testes diários. O boletim epidemiológico 26 do Ministério da Saúde fala na distribuição de 5,4 milhões de exames RT-PCR entre 5 de março e 10 de agosto, ou 34 mil por dia…
Mesmo diante dessa tragédia real e da antipolítica genocida, melhora a avaliação de Jair Bolsonaro, segundo o Datafolha.
Peçamos, então, o impossível: impeachment.
Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência – Use com Cuidado”.