Em entrevista ao Jornal Brasil Popular, Ricardo Berzoini, ex-ministro, ex-deputado federal e ex-presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, explica por que o arcabouço fiscal é importante para o Brasil e alerta para o fato de que “as circunstâncias terão de ser enfrentadas com estratégia, tática e inteligências. No caso contrário, estaremos muito mais atrapalhando o governo do que ajudando”.
Confira a entrevista
Qual a vantagem do Arcabouço Fiscal sobre o Teto de Gastos?
Ricardo Berzoini – A proposta apresentada pelo ministro Fernando Haddad e a ministra Simone Tebet, nessa quinta-feira (30), aponta para uma estratégia fiscal que, ao contrário do Teto de Gastos, assegura um crescimento das despesas acima da inflação, que pode ser maior, se a arrecadação for maior, ou pode ser menor se a arrecadação for menor. Mas haverá crescimento de despesas.
E essa é uma crítica que está sendo feita a essa estratégia, ou arcabouço, pela direita. Ou seja, a direita está criticando um programa que assegura um aumento das despesas. É óbvio que é um aumento de despresas inferior ao que nós gostaríamos, mas é o que as circunstâncias políticas e econômica permitem neste curto prazo, até o fim do Governo Lula 3, que é um curto prazo em termos de economia. São 3 anos e meio pela frente para demonstrar que o governo tem uma estratégia fiscal realista e, ao mesmo tempo, comprometida com os programas sociais e com os investimentos.
A segunda questão, que acho importante, é que essa estratégia é sobre o Orçamento Geral da União. Ou seja, as estatais e os fundos não orçamentários, com o Fundo de Garantia, não fazem parte do Orçamento Geral da União, ou seja, é possível expandir investimentos das estatais e dos fundos sem que haja qualquer impacto nessas contas.
Imagino que o governo está mirando nisso, ou seja, faz um crescimento moderado de despesas no Orçamento Geral da União, e faz uma estratégia de investimentos mais ousada por meio de PPPs [Parceiras Público-Privadas), concessões, fundos e estatais.
Qual a relação do arcabouço fiscal com a inflação, com o preço das coisas?
Ricardo Berzoini – A expectativa de inflação, numa economia capitalista, obviamente, é em parte, vinculada a questões fiscais. Quer dizer, o conjunto dos agentes econômicos opera muito pelas expectativas de futuro. E, nesse caso, ter uma estratégia fiscal factível, realista, ajuda a alinhar as expectativas sobre a dívida, a inflação, a taxa de juros, para o futuro. Claro que não é uma garantia por si só, mas ajuda.
Em segundo lugar, o combate à inflação se dá muito mais do que o que o Banco Central defende com taxas de juros, que não concordo, mas se dá, fundamentalmente, por uma estratégia de reorganizar o sistema tributário. Uma reforma tributária que, por exemplo, reduza por eficiência, por melhor organização do sistema, a tributação sobre os produtos, inclusive a burocracia tributária que o sistema exige, pode fazer com que tenhamos a redução de preços de alimentos, vestuário, moradia, a partir dessa reorganização da economia.
É claro que isso aí exige um manejo muito atento do Ministério da Fazenda e dos demais ministérios envolvidos. Mas é possível. Como fizemos em 2003 até 2005. Nos três primeiros anos do Governo Lula 1 (2003-2006), nós conseguimos desarmar uma bomba que estava armada, que era uma inflação, que chegou, em abril de 2003, em 12 meses, a quase 20%. E graças à ação organizada do governo, conseguimos reduzir a inflação rapidamente.
Trata-se de uma questão de operação do dia a dia. Não é a estratégia fiscal sozinha que assegura. Tem de ter estratégia fiscal e tem de ter uma operação do governo muito atenta aos preços dos alimentos, que sacrifica mais a classe trabalhadora; ao preço dos combustíveis que onera passagens de ônibus e de outros meios de transporte; o custo da eletricidade, que tem de ser reduzido e essa é uma batalha que o governo Lula tem de fazer de maneira moderada até porque quanto mais a inflação baixar, menos esse Banco Central independente, que, infelizmente, a lei garante hoje a independência, terá argumento para manter a taxa de juros nessas alturas.
O Teto de Gasto afetou muito os serviços e os servidores públicos. Qual a vantagem que o arcabouço fisccal do governo Lula tem para os servidores?
Ricardo Berzoini – Ele assegura, como há a garantia da evolução, pela inflação, mais 70% do que seria a inflação, ou seja, há uma garantia. A priori, o que nós teremos é a correção de todas as despesas pela inflação, ou seja, haverá recursos financeiros para corrigir os salários, por exemplo, e não haverá mais defasagem salarial de servidores. E, ao mesmo tempo, é possível termos também mais investimentos na área de direitos sociais dos próprios servidores.
Quer dizer, no Teto de Gastos, houve, em primeiro lugar, uma malandragem do govenro Bolsonaro e também do governo Temer porque não deram reajuste. A lei do Teto de Gasto é do Temer, mas a operação do Orçamento é do governo Bolsonaro. Eles não deram nenhum reajustes quando poderiam ter dado pelo menos a inflação porque o teto de gastos era o que foi gasto no ano anterior corrigido pela inflação.
O que eles fizeram é que permitiram a correção pela inflação de outras coisas e arrocharam no salário do servidor e não fizeram, praticamente, concurso público, o que, inclusive, aumentou a carga de trabalho dos servidores. Agora não. No Governo Lula 3 está garantido, nesta estratégia fiscal, e o governo tem sensibilidade para, em todos os anos, corrigir os salários dos servidores pelo menos pela inflação. Por exemplo, acaba de corrigir, bem acima da inflação, o auxílio-refeição. A portaria saiu ontem [quinta-feira (30)], elevando para R$ 660,00 o valor mensal do vale-refeição dos servidores. Estava congelado há muitos anos.
Este governo tem compromisso com isso e disso nós não temos dúvidas. Agora, é óbvio que o ideal seria ter mais. Mas a economia brasileira hoje não tem espaço para ter mais. Poder ter esse espaço no futuro. Nós teríamos uma boa política salarial para os servidores, um governo atento às demandas de negociações com os servidores, mas nos limites também do que cabe no Orçamento.
Como o Banco Central independente interfere no arcabouço fiscal e atrapalha alguma coisa e como fazer para esse processo de independência desse banco seja revertido?
Ricardo Berzoini – A visão da atual diretoria do Banco Central acerca da inflação é burocrática. A regra que eles usam, com fórmulas matemáticas e dados do mercado, essa diretoria usa a seguinte tese: para alcançar o centro da meta é preciso desaquecer a economia. Na cabeça deles qualquer atividade econômica crescente gera a inflação e isso não é verdade. Mas é essa a tese deles.
Ocorre que, por causa desse pensamento dessa diretoria, temos hoje no Brasil a maior taxa de juros do planeta em termos reais. Por que temos essa taxa de juros? Porque esse modelo matemárico que eles usam levam o Banco Central a decidir por essa taxa de juros. Só para se ter uma ideia, a inflação dos EUA hoje é muito parecida com a brasileira. Está na faixa de 5%, 6% ao ano. E, apesar disso, o Banco Central lá está fazendo um arrocho monetário de 4.7%. E aqui é 13.7% Portanto, o empresário que trabalha nos EUA, que está produzindo lá, tem um custo financeiro de capital muito menor do que o brasileiro. E aí como é que os brasileiros querem que a economia nacional tenha competitividade? Isso que falei acerca dos EUA vale também para a Europa.
A Europa toda está com a taxa de juros reais na faixa de 2,5%, 3,5% acima da inflação. Em alguns países não chega nem a isso. E o Brasil está com uma taxa de juros que está enriquecendo de dinheiro investido que é de mais de 6% acima da inflação. Então, é óbvio que, como o Banco Central é independente e trabalha com esse modelo, ele ameaça o Governo Lula 3. Imaginemos que o ministro Haddad apresentasse uma estratégia fiscal mais gastadora. As expectativas de juros do mercado financeiro aumentariam e o Banco Central, na próxima reunião, poderia até ter argumentos para aumentar ainda mais os juros.
O Governo Lula 3 não tem força, hoje, no Congresso Nacional para revogar a independência do Banco Central. Isso é uma coisa muito importante que a militância saiba: se nós tivéssemos força para revogar a independência, na minha opinião, isso seria uma coisa natural a se fazer. Mas a eleição de 2022 não nos deu um Congresso Nacional capaz de entender o mal que faz ao País o Banco Central independente e com essa visão míope da relação entre inflação e crescimento econômico.
O arcabouço fiscal é capaz de promover desenvolvimento e crescimento do Brasil e como o Banco Central independente impacta impedindo o crescimento e o desenvolvimento do País?
Ricardo Berzoini – O presidente Lula vai agora à China, no dia 11/4. Já deveria ter ido, mas ficou doente. O presidente sabe que, com as restrições que temos internas na economia, uma das formas de induzir o crescimento é atrair investimentos estrangeiros e ampliar o comércio exterior, ou seja, ampliar as exportações do Brasil e, ao mesmo tempo, atrair investimentos. E aí a China, bem como outros países, são muito importantes porque eles podem fazer investimentos de qualidade no Brasil, por exemplo, fabricar aqui alguns produtos eletrônicos que são importados hoje. Eles podem fazer investimentos em infraestrutura. Em 2015, tivemos uma negociação do governo Dilma com a China de um conjunto de estudos para a infraestrutura, inclusive a Rodovia Bio-Oceânica, que ligaria o litoral do Oceano Atlântico brasileiro até o litoral do Oceano Pacífico do Peru para reduzir o custo das exportações brasileiras e de todos os países da América do Sul.
Esses investimentos não foram adiante porque os governos posteriores – Temer e Bolsonaro – não deram consequência a isso. O Lula vai, agora, retomar essa agenda. Estou falando isso porque essa é uma das maneiras que se tem, mediante investimentos exteriores, de países que tenham um mínimo de afinidade com a nossa visão de mundo, de fazer grandes investimentos em infraestrutura e também economia produtiva.
A segunda maneira que tem é aquilo que falei anteriormente: a boa operação dos fundos que não fazem parte do Orçamento, como é o caso do Fundo de Garantia, e as concessões de obras de infraestrutura que possam se fazer em acordo com a iniciativa privada. Vou lhe dar um exemplo com aeroportos. O Aeroporto de Brasília era acanhado. No governo Dilma foi feita uma concessão bem desenhada, bem construída, gerou, no auge da construção, 5 mil empregos diretos e ganhamos uma aeroporto moderno, bem construído, seguro. Portanto, não há nenhum problema em fazer parcerias com o setor privado. O único cuidado que tem de ter é desenhar um edital de concessão bem-feito, que não enriqueça o setor privado além do lucro que tem normalmente.
E a outra questão que temos é a possibilidade de fazer, no Minha Casa, Minha Vida, a operação com financiamento e subsídios do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Ou seja, o Orçamento da União não é a única fonte de recursos para a economia. Ele é uma das fontes. As demais fontes também podem ajudar.
Nessa perspectiva de outras fontes de recursos, como fica a situação da Petrobrás e da Eletrobrás nessa concepção de economia e dentro da visão do arcabouço fiscal?
Ricardo Berzoini – O problema central para reverter tanto a privatização da Eletrobrás como das subsidiárias da Petrobrás, como as refinarias e a BR Distribuidora, é uma questão mais judicial do que orçamentária porque as privatizações foram feitas de maneira pública. Nada foi feito escondido. O que precisamos verificar e, certamente o presidente Lula já mandou verificar, é em que medida nós temos espaço para questionar os procedimentos feitos porque recomprar depende, obviamente, de orçamento, mas também depende de quem comprou querer vender. Ninguém é obrigado a vender.
Do ponto de vista jurídico, fazer desapropriações nesses casos teria o risco muito grande de ser derrotado pelo Poder Judiciário porque é muito difícil, no mundo de hoje, com uma visão, digamos, hegemônica que tem algumas teses liberais, não só no Brasil, mas, no mundo, e você pode observar que os partidos de esquerda na Europa que, muitas vezes, enfrentam essa contradição, imaginar que se vai conseguir reverter na canetada é muito difícil.
Por exemplo, no caso da Eletrobrás tem de ter uma estratégia ou localizar alguma ilegalidade cometida no processo ou conseguir, no mercado, comprar ações até retomar uma maioria de votos na Assembleia Geral dos acionistas. No caso da Petrobrás, que são as subsidiárias, a empresa não foi privatizada, mas algumas empresas subsidiárias, como a BR Distribuidora, algumas refinarias e outras subsidiárias de menor porte, que foram vendidas, é a mesma coisa: verificar, primeiro, se houve alguma ilegalidade. E, segundo, se há um meio de mercado de retomar o controle porque na ordem jurídica da Constituição brasileira de hoje, para se desapropriar alguma coisa, com fazia o Brizola nos anos 1960, vamos encampar, é preciso ter um arcabou jurídico bem diferente do que existe hoje. Essa é uma opinião pessoal minha. Eu digo sempre que o meu posicionamento pessoal à esquerda não pode me impedir de enxergar em que mundo vivemos. Eu digo isso porque vejo muita gente fazendo discursos sem analisar as circunstâncias.
É claro que num discurso cabe tudo. Mas precisamos entender o seguinte, o governo Lula não é composto de uma maioria parlamentar de esquerda. E não podemos criar constrangimentos para o governo que o enfraqueçam na relação com o Congresso Nacional. Por isso que eu sempre falo que as circunstâncias terão de ser enfrentadas com estratégia, tática e inteligências. No caso contrário, estaremos muito mais atrapalhando o governo do que ajudando.
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