Por Wesley Ferro Nogueira*
24 de abril de 2022
Há alguns dias tive a oportunidade de participar de um seminário promovido em conjunto pelo ministério Público do DF e Territórios e pela Rede Urbanidade, que é um coletivo formado por autoridades, organizações e ativistas da mobilidade urbana, quando abordei o tema “Desafios para um novo sistema de transporte público coletivo integrado”, destacando preocupações e proposições para a construção de um modelo único visando ao atendimento do DF e dos 11 municípios do Entorno que hoje convivem com o serviço interestadual semiurbano.
A preocupação inicial decorre do fato de que os primeiros contratos da atual concessão do Sistema de Transporte Público Coletivo do Distrito Federal (STPC/DF) chegam ao seu final no mês de dezembro deste ano, encerrando o período de 10 anos das suas vigências, mas até o presente momento não há nenhum indicativo da previsão de uma nova licitação para a contratação dos serviços. Em 2020 até houve o lançamento de uma proposta de edital por parte da Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob/DF) e a realização de uma audiência pública, mas a fragilidade do projeto apresentado era tão evidente, com a simples reprodução do mesmo modelo licitado em 2012, como criticamos e demonstramos na época, que acreditamos que o GDF não tenha avançado ou mantido o processo com aquela configuração.
Entretanto, passados dezesseis meses após aquele movimento inicial, ainda não há registro de que a proposta tenha sido reformulada ou que ela já tenha sido submetida à apreciação prévia dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas e a Controladoria-Geral do DF, e os atuais contratos das concessionárias se aproximam rápido do seu encerramento. Considerando que a história desses contratos é marcada por muita turbulência, o que inclui decisões do TJDFT em segunda instância para o seu encerramento, e que as experiências indicam que os processos de licitação do transporte público podem se arrastar por um longo período, é difícil compreender qual seria a estratégia do GDF em relação a isso tudo. Será que há algum interesse do GDF para a utilização do instrumento previsto no edital de 2011 visando à renovação dos atuais contratos por mais 10 anos? Ou o caminho será a efetivação de alguma contratação emergencial dos serviços durante o período até a finalização de todo o processo licitatório?
Outras duas preocupações que também merecem destaque, que se referem à temas complexos que foram introduzidos ao longo do processo e que devem ser considerados como premissas importantes para uma nova licitação do sistema de transporte público, tratam dos impactos e as transformações produzidas pela pandemia no deslocamento das pessoas dentro da cidade e do repasse para o GDF da responsabilidade pelo serviço de transporte rodoviário interestadual
semiurbano coletivo de passageiros operado no Entorno.
O edital de licitação apresentado em 2020 utilizou as referências de sistema operacional e de rede de transporte propostos em 2012, inclusive se baseando em dados de demanda do ano de 2008.
No entanto, não é novidade para ninguém que a pandemia provocou uma redução significativa no número de passageiros do transporte público e uma alteração no padrão de viagens dentro da cidade, mas isso ainda não foi captado por nenhuma Pesquisa Origem Destino (POD), visto que a última realizada no DF é de 2016 e foi produzida dentro do contexto e elaboração do Plano de Desenvolvimento do Transporte Público sobre Trilhos (PDTT).
E quando falo em Pesquisa OD, não necessariamente estou defendendo a realização da tradicional metodologia de apuração de dados a partir de visitas domiciliares, uma vez que há possibilidades da identificação de informações com o uso da tecnologia, mas defendo que é imprescindível identificar os atuais desejos de viagens por parte da população antes de propor a manutenção de um sistema tronco-alimentado e o desenho de uma rede de transporte público.
Ou será que podemos afirmar com convicção que as viagens radiais ainda são o padrão?
Por intermédio do Convênio de Delegação no 001/2020, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) delegou ao Distrito Federal as competências pela gestão, regulação e fiscalização do serviço operado no Entorno por um período de 15 anos. Com isso, a Semob efetivamente passou a ser uma autoridade única sobre dois sistemas de transporte público coletivo, o que poderia ser um instrumento facilitador para a tão desejada integração e a racionalização desses dois modelos, lembrando que são quase 1.200 linhas nos dois territórios e uma parte representativa com sobreposição.
A proposta de integração não é nova e o próprio Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do DF (PDTU) já destacava esse caminho como sendo uma de suas diretrizes (vide Artigo 4o , Inciso IV da Lei no 4.566/2011) e a necessidade de uma articulação do GDF “com os municípios do Entorno para a implantação de um único sistema integrado de transporte coletivo” (Artigo 15, Inciso VI).
Sendo assim, a proposta mais adequada seria investir em uma integração plena entre os dois sistemas nas modalidades tarifária, física e operacional, tendo como pontos de conexão os terminais de entrada do DF (BRT Santa Maria, São Sebastião, Sobradinho ou Planaltina, Brazlândia, Setor O e Samambaia Sul), introduzindo o instituto de um Bilhete Único Metropolitano Temporal e com o aporte de subsídios públicos que seriam financiados tanto com recursos orçamentários do GDF como dos municípios que seriam beneficiados com esse novo modelo, além da receita tarifária e de outras fontes complementares que poderiam ser viabilizadas e com a concentração de todo esse volume financeiro em um Fundo Metropolitano de Mobilidade Urbana, que teria uma gestão paritária entre governo e sociedade.
Adicionalmente, para o sucesso desse sistema integrado também seriam necessárias ações em outros campos, como o investimento pesado em infraestrutura exclusiva para o transporte público, seja a implantação de novos corredores e faixas no território do Distrito Federal e, no mínimo, a implementação de soluções com faixas reversas nos horários de picos nas vias que dão acesso ao DF (BR-040, BR-020, BR-070 e BR-060), além da qualificação das redes de circulação a pé e cicloviária para acesso ao sistema e a criação de estacionamentos junto à terminais e estações, visando o impulso à integração intermodal.
Não resta dúvida que a construção de um sistema integrado contribuiria e muito para a racionalização da rede e a nova licitação do DF deveria levar isso em consideração para o novo desenho, o que ainda não foi feito. O processo em direção a um sistema único de transporte público não é simples, mas nós temos uma experiência de governança bem sucedida perto de nós e que agora está passando por várias alterações qualitativas. A Região Metropolitana de Transporte Público de Goiânia é composta pela capital e mais 18 municípios, com tarifa única de R$ 4,30 e subsídio financiado pelo Governo de Goiás (41,2% do total) e Prefeituras de Goiânia (41,2%), Aparecida de Goiânia (9,4%) e Senador Canedo (8,2%). O desafio é encontrar um modelo legal e viável que configure um arranjo adequado para a nossa realidade.
Outro grande problema que ainda não foi enfrentado, e creio que não há a menor chance de sucesso na sequência do processo da licitação, é a falta de inserção da sociedade na construção da proposta. Dá para considerar que a realização de uma única audiência no final de 2020 pode ser destacada como alcance pleno da participação social? O projeto precisa ser amplamente debatido com os segmentos, incluindo a representação dos municípios do Entorno, para a coleta de subsídios que sejam efetivamente incorporados ao edital.
Nesse aspecto vejo a necessidade de duas mudanças significativas mirando o edital da licitação: a construção paralela de um novo espaço de representação social, com a instituição legal de um Conselho Metropolitano de Mobilidade Urbana, que teria câmaras temáticas para a deliberação acerca dos temas específicos, orçamento próprio e assessoria de equipe técnica para a produção de conteúdo voltado ao conhecimento da sociedade, além da efetivação do Índice de Qualidade do Transporte (IQT) como instrumento não só para a avaliação da prestação do serviço de transporte, mas principalmente como parâmetro da composição de parte da remuneração da concessionária, ou seja, o acesso pleno ao valor se daria com a execução integral da operação e com o alcance de uma pontuação mínima entre os indicadores que compõem o IQT.
O edital de 2020 insistiu na defesa da tarifa técnica como modelo de remuneração do STPC. Apesar das várias críticas a essa opção, avalio que o problema em si não é a própria tarifa técnica, mas a falta de transparência que marcou todo o período dos atuais contratos, como a identificação precisa do volume real de passageiros transportados e, principalmente, os processos que orientaram as suas revisões, que deveriam ser procedimentos extrordinários, porém tiveram utilização recorrente sem que fossem conhecidos os parâmetros para a sua utilização. Assim, mesmo que a forma de remuneração seja substituída por outro modelo, como o pagamento por km percorrido ou pelo custo total dos serviços, sem transparência os erros se repetirão e instrumentos de controle deveriam estar inseridos no edital, o que ainda não existe.
A licitação também poderia incorporar uma série de inovações que estão sendo implantadas em outras cidades, como a separação entre a oferta de ônibus e a operação, ou o serviço sob demanda com rotas e itinerários flexíveis, etc. Assim como também poderia estabelecer novas exigências como a eletrificação total da nova frota e veículos com piso baixo, ar condicionado e motor traseiro. Entretanto, isso vai representar um custo maior para o sistema, o que eventualmente aumentaria a necessidade de ampliação de subsídios públicos para o seu financiamento e que necessariamente deveria ser objeto de debate com toda a sociedade, coisa que não está acontecendo. Fora a implantação do Centro de Controle Operacional.
Não acredito que se consiga concluir todo o processo de licitação do STPC em período inferior à 6 meses (e isso não é torcida contra de forma alguma, apenas a referência de outras experiências), para que seja iniciada nova operação, ainda mais se fosse viabilizada a tal integração entre os dois sistemas, o que parece ser pouco provável conforme manifestações já feitas pelo GDF. Com a aproximação do final do ano e da atual gestão, ao mesmo tempo em que se identifica um prolongado silêncio por parte do governo, não há como deixar de apresentar e compartilhar todas as preocupações com a condução desse processo e os riscos que podem advir dessa lentidão.
* Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel”, integra a Rede Urbanidade, é membro suplente do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF e integra o Setorial de Transporte e Mobilidade do PTDF.