Benny Schvarsberg – Professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB) e Henrique Adriano, Arquiteto urbanista, integrante do coletivo Agenda Popular do Território*
Vivemos tempos de “boiadas”, termo cunhado pelo ex-ministro do Meio Ambiente do atual governo para significar a liberação oportunista de todo tipo de licenciosidade no regramento ambiental. Tal fenômeno também tem se alastrado sobre a legislação urbanística, pautando os processos de revisão de instrumentos da política urbana pelo país.
No Distrito Federal (DF), a “boiada urbanística” se reproduz na revisão do Plano de Ordenamento Territorial (Pdot) e da Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) e, mais recentemente, na proposição dos Projetos de Lei Complementar (PLCs) de Muros e Guaritas e de Parcelamento do Solo, recém submetidos a Audiências Públicas.
O PLC de Muros e Guaritas autoriza o cercamento dos condomínios horizontais, forma de ocupação que, irregularmente, se disseminou no DF sob a conivência de sucessivos governos. Não se restringe à regularização de loteamentos fechados existentes, permitindo também novos parcelamentos nesta modalidade.
Expressão de um urbanismo corporativo e privatista, esses loteamentos configuram enclaves sociais caracterizados por baixas densidades urbanas. Contribuem para a dispersão e fragmentação de uma cidade já difusa, com o consequente aumento dos custos ambientais e sociais da urbanização.
O PLC estimula esse modelo, ao deixar de apresentar dispositivos e orientações para que os loteamentos fechados existentes se integrem ao tecido urbano e se configurem como bairros, com ruas vivas e usos mistos pensados a partir dos eixos de transporte público de alta capacidade.
Pelo contrário, a cidade vislumbrada na proposta é a das vias expressas, dos automóveis individuais, estéril e monofuncional. Apesar da suposta segurança propagandeada por empreendimentos do tipo, as localidades mais seguras do DF são, justamente, aquelas com espaços públicos generosos, acessíveis, que têm sua melhor expressão nas superquadras residenciais do Plano Piloto.
Concebidas por Lucio Costa, com prédios sob pilotis para permitir o ir e vir de um chão de cidade livre e democrático, pensadas como unidades de Vizinhança, com o compartilhamento de serviços e equipamentos públicos, as superquadras representam a antítese do urbanismo dos muros estimulado pelo PLC. Essa oposição fica evidente diante da permissão da existência de vias de grande porte e de equipamentos públicos no interior dos loteamentos fechados, o que, na prática, significará sua privatização.
São esperançosos, todavia, os posicionamentos críticos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-DF) e de estudiosos da Universidade de Brasília (UnB), quando apontam a inconstitucionalidade do projeto em questão. As obrigações sociais que integram o direito à propriedade e configuram o princípio constitucional da função social da cidade e da propriedade urbana estão desconsideradas no texto apresentado. Além disso, o PLC viola o direito de ir e vir e o direito à mobilidade urbana eficiente, também garantias constitucionais.
Da mesma forma, o segundo PLC em análise, de Parcelamento do Solo Urbano, é conivente com os loteamentos fechados ao não identificar os cercamentos como geradores de impactos urbanísticos negativos. Mais que isso: a proposta remete à regulamentação futura, não sujeita à aprovação legislativa, as formas de compensação por tais impactos, abrindo caminho para que todo e qualquer impacto seja admissível desde que compensado. Como diz o ditado popular: “Pagando bem, que mal tem?”.
Outra temeridade desse PLC envolve o enfraquecimento do controle social sobre o licenciamento urbanístico, materializado na dispensa de manifestação do Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do DF (Conplan) em retificações e ajustes nos projetos registrados, bem como em alterações de parcelamentos consolidados. Nesse segundo caso, também podem ser dispensados estudos de impacto urbanístico e ambiental e a participação social.
É de se estranhar que a proposta disponha sobre um dispositivo que incide sobre áreas consolidadas, capaz de alterar parâmetros de uso e ocupação do solo. Há grande possibilidade que tal alternativa se converta em “balcão de negócios”, atropelando as determinações pactuadas em outros planos e leis.
Ante os riscos apontados, é imprescindível que entidades e movimentos sociais que têm compromisso com o direito à cidade se mobilizem reivindicando um debate amplo e democrático ao Governo do Distrito Federal e à Câmara Legislativa do DF acerca dos PLCs, resistindo aos retrocessos urbanísticos inaceitáveis. A “boiada urbanística” não pode passar. Uma outra política urbana, para uma outra cidade, é possível e cada vez mais necessária.
*Artigo publicado no Correio Braziliense