Vez ou outra surgem políticos que acusam a esquerda de ser hostil em determinadas situações de enfrentamento. No entanto, a essência da esquerda brasileira é de solidariedade e compaixão com as causas populares e dos trabalhadores em geral. Não foi diferente no dia a dia do movimento liderado pelo Núcleo em Defesa da Democracia Margarida Alves (NDD), durante as manifestações na Praça dos Três Poderes e nas atividades desenvolvidas em outros espaços (é importante sempre lembrar a participação fundamental dos demais coletivos e entidades, a exemplo do Núcleo de Base Marisa Letícia, Comitê Lula Livre DF e partidos do campo democrático). Todo esse grupo enfrentou a oposição dos bolsomínions e o abuso de poder da Polícia Militar do Distrito Federal. Houve várias tentativas de diálogo, socorro a adversários e até momento de oração na praça, em conjunto com ativistas evangélicos. Como escreveu o poeta português Fernando Pessoa: “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.
O fato é que a militância do Partido dos Trabalhadores é reconhecida como uma das mais aguerridas; o principal patrimônio partidário na luta política e popular brasileira. A determinação desses homens e mulheres, inoxidáveis, de manter as cabeças erguidas e remar contra a maré da ignorância política, levantar as bandeiras, defender o governo Dilma, o Lula Livre e a democracia, numa conjuntura adversa, fez muita diferença. Como fizeram diferença os milhares de comitês criados em cada estado e na maioria dos municípios do país.
Mas esse trabalho é complexo e exige coragem. Como foi o caso dos integrantes do NDD, quando tiveram que enfrentar a Polícia Militar do DF na Praça dos Três Poderes. Todo mundo sabia do posicionamento hostil da PM durante o golpe contra o governo Dilma Rousseff. Mas os militares ficaram ainda mais agressivos após a vitória de Jair Bolsonaro. Eles pareciam proteger os bolsomínions de tanta truculência usada contra os integrantes do NDD. O fundador do PT de Santa Maria, Pedro Rodrigues, conta que houve até confronto físico com a polícia. “Eles queriam retirar as faixas em defesa do Lula Livre e não permitimos. Gritamos: não vai tirar”, explica como começou uma disputa que teve embate direto.
Os policiais usavam tanto gás de pimenta contra os inoxidáveis que eles chegaram a ironizar a agressão. O servidor aposentado do GDF (Governo do Distrito Federal), Orlando Ribeiro, fala da injustiça de tratamento da PM quando os militantes do NDD eram agredidos pelos bolsomínions. Ao invés de as forças policiais reprimirem os agressores, atacavam os agredidos com spray de pimenta. Eles chegaram a cunhar uma palavra de ordem: “Ei, polícia! Joga mais, esse gás é uma delícia!” Ironias à parte, o caso é sério. Num desses embates com a PM, a militante Fátima de Deus foi parar no hospital. “Eu engoli gás de pimenta, tive uma reação alérgica e fui internada. Até hoje tenho muita dificuldade com o cheiro do gás”, diz. Fátima conta que a polícia do DF monitorava todas as ações do NDD na Praça dos Três Poderes, enquanto os blogueiros bolsonaristas filmavam e fotografavam o movimento num gesto de intimidação. “Apesar de tudo, a gente sentia que vinha crescendo o apoio e poder de aglutinação, devido a nossa postura, coerência e persistência, desde o início”, analisa.
A persistência do movimento é algo que merece acréscimo de linhas. O NDD começou com atos em frente ao Palácio do Planalto, sempre às segundas. Depois passou a realizar manifestações em frente ao STF, às quartas-feiras. Os atos aconteciam o ano todo, fosse dia de sol ou chuva, de frio ou calor extremo. Para quem não conhece o clima de Brasília, é importante dizer que há momentos de intenso calor de até 37oC, combinado com umidade abaixo de 12% – coisa de deserto. Em outro período, verificam-se temperaturas abaixo de 10oC, e ainda momentos de muita chuva. Nos meses de novembro e dezembro, o DF ultrapassa 220 mm de chuva chegando a 272 mm de precipitação. A presença dos inoxidáveis na praça era tão certa, que um vendedor ambulante passou a se organizar em função do clima. Sempre que chovia, ele apresentava as capas de chuva. Vendia tanto, que passou a seguir os manifestantes em agendas programadas em outros espaços, sempre oferecendo artigos de necessidade para cada ocasião.
As fortes chuvas também promoveram um encontro inusitado entre os militantes do NDD e os bolsonaristas. Os dois lados disputavam o melhor espaço em frente ao STF, em função de julgamento pautado sobre a prisão do Lula. Do céu, desabou uma tempestade. Os dois lados foram levados a dividir o abrigo de um dos monumentos existentes na Praça dos Três Poderes. Enquanto aguardavam a estiagem, alguém do lado adversário chamou o “pastor”, dentre eles. E daí ocorreu o seguinte diálogo protagonizado pelo militante do NDD, Pedro Rodrigues, fundador do PT de Santa Maria:
— Tem pastor aqui? – perguntou imediatamente Pedro Rodrigues, aos ouvir a invocação do pastor dentre os adversários políticos.
— Tem sim – um homem se apresentou, dizendo que havia feito doutorado na Inglaterra.
— Pastor, vamos orar?
— E petista ora?
— Vamos orar e o que não houver concordância do seu espírito, o senhor fica calado.
O petista Pedro Rodrigues passou a entoar uma oração de improviso. Segundo ele, durou aproximadamente 25 minutos. Depois disso, um dos adversários mais agressivos pediu perdão pelos xingamentos anteriormente dirigidos ao Pedro Rodrigues e ao Fabiano Leitão (trompetista). Nesse dia, além da oração e dos pedidos de desculpa, houve até abraço. O clima melhorou em todos os aspectos.
As fortes chuvas também promoveram um encontro inusitado entre os
militantes do NDD e os bolsonaristas. Os dois lados disputavam o melhor espaço em
frente ao STF, em função de julgamento pautado sobre a prisão do Lula. Do céu,
desabou uma tempestade. Os dois lados foram levados a dividir o abrigo de um dos
monumentos existentes na Praça dos Três Poderes. Enquanto aguardavam a estiagem,
alguém do lado adversário chamou o “pastor”, dentre eles. E daí ocorreu o seguinte
diálogo protagonizado pelo militante do NDD, Pedro Rodrigues, fundador do PT de
SA solidariedade e a compaixão são características do movimento de esquerda no Brasil e no mundo. Quando o NDD realizava um ato em frente à Procuradoria Geral da República, um entregador de aplicativo passou xingando os participantes. Mas, ao se desconcentrar, a moto derrapou e ele foi ao chão. O grupo correu para socorrê-lo da queda, quando o motoqueiro pensava que seria agredido. O relato de Fabiano Leitão faz referência à situação degradante dos trabalhadores vinculados a aplicativos, sem carteira assinada, semi-escravos, explorados pelas plataformas que exigem o uso de motos, carros ou bicicletas, sem qualquer ajuda financeira. Ganham quase nada, arcam com os custos e não têm direitos trabalhistas. “A gente sabe distinguir os nossos reais inimigos”, conclui.
A militância petista, certamente, tem muitas histórias pra contar nos quatro cantos do país. Antes de ser conhecido como “o trompetista” e de integrar o NDD, Fabiano Leitão foi percebido pelo link de transmissão da Rede Globo. Por decisão pessoal, ele postou-se atrás do repórter e gritou “Globo Golpista”, exatamente no dia em que Dilma foi destituída da Presidência da República, em 31 de agosto de 2016. A entrada do trompete ocorreu após a prisão do ex-presidente Lula. “Eu fico de longe e o trompete explode porque é muito alto”, diz Fabiano que contabiliza 24 transmissões da emissora invadidas pelo bordão “olê, olê, olê, olá, Lulaaaa, Lulaaaa!”, executado no trompete. Fabiano fala que a missão foi “colocar o Lula na pauta porque ele sempre foi escondido na tv. Era uma forma de despertar a militância”, explica. Ele chegou inclusive a participar de invasões maiores e mais criativas. Quando o Bom Dia Brasil entrou no ar, ao vivo, o grupo de militantes abriu uma faixa enorme pelo Lula Livre, no gramado da Esplanada dos Ministérios. Enquanto isso, Fabiano transmitia sua mensagem pelo trompete, lembra Cláudia Regina, coordenadora do Núcleo de Base Marisa Letícia do Congresso Nacional e integrante do NDD.
Mas, de onde surgiram tantas ações? O que faz com que a militância se mantenha firme, atuante e de cabeça erguida? De onde vem a resistência e disposição para continuar a luta, quando tudo parece estar perdido? Por que a deposição da primeira mulher, eleita democraticamente para o segundo mandato na presidência da República, não trouxe o desamino e a imobilidade geral? Por que a prisão de Lula aglutinou as forças progressistas em busca de uma solução?
Na sexta matéria, última da série, você saberá a opinião dos entrevistados sobre algumas dessas questões e, também, vamos desvendar de onde surgiu o nome dos “inoxidáveis”.#