Por muito tempo, a história brasileira ajudou a construir a imagem da abolição da escravidão como uma concessão bondosa da princesa Isabel, a “redentora”. É fato que boa parte dos movimentos negros e alguns dos principais abolicionistas “ficaram” monarquistas — nas palavras da socióloga Angela Alonso — após a abolição, para defender as conquistas dos ex-escravizados. Mas a historiografia mais estabelecida tratou de, no século 20, corroborar a visão de que movimentos abolicionistas ou a Guarda Negra, que defendia um terceiro reinado de Isabel, eram apenas “gratos” pela “bondade” da alteza, sem lhes dar um sentido de resistência e de agência contra a escravidão. A liberdade foi “concedida”, e não conquistada. É nessa discussão que se insere O massacre dos libertos: sobre raça e República no Brasil, do sociólogo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Matheus Gato.
O maranhense diz que gosta de pensar a posição do estado em que nasceu como uma questão epistemológica: como o Brasil pode ser visto desse lugar periférico? Como podemos analisar a formação da sociedade moderna brasileira de fora do centro? A isso se soma outra experiência de descentramento: trata-se de um pesquisador negro inserido no contexto da academia majoritariamente branca paulista, mesmo caso desta resenhista, embora também nordestina.
O trabalho trata de um caso bastante específico no pós-abolição, insignificante para a maioria dos livros de história: uma cena de violência ocorrida no centro de São Luís em 17 de novembro de 1889, assim que chegou a notícia de que a República havia sido proclamada. Um grupo de cerca de 3 mil pessoas que temiam que a novidade significasse o retorno da escravidão, como circulavam os boatos, marchou até a porta do principal jornal da cidade, O Globo, dirigido então por um liberal preeminente. Lá, foram massacradas pelo exército nacional, que atacou e até torturou e matou alguns dos manifestantes, em sua grande maioria pessoas negras — chamados então de “libertos”, embora já houvesse no estado uma expressiva quantidade de trabalhadores livres.
Gato conta que prestou atenção no caso ao ler um capítulo do romance Os tambores de São Luís, do maranhense Josué Montello, a partir do qual constrói seu poderoso argumento, reconstituindo minuciosamente o massacre com base em várias fontes: memórias, notícias de jornal, livros de história do Maranhão e romances. A graça aqui é que não se trata apenas de uma montagem de quebra-cabeça a partir de recortes, mas de uma recomposição que se põe a enquadrar cada uma dessas fontes, mostrando de que lugar social falavam. Por exemplo, cabe entender que Sousândrade, um dos escritores mais festejados da região naquele período, era um republicano que considerou o massacre um incidente menor frente à importância da mudança política. Os mais consagrados autores do Maranhão no século 20, que consideram a manifestação um evento isolado e sem importância, são também qualificados, pois tendem a pertencer ao topo da pirâmide social local — são desembargadores, advogados, todos de altas posições seguindo as tradições literatas do estado.
Ao mostrar como as memórias do massacre foram silenciadas, atinge notáveis como Freyre
Com quatro capítulos, a obra parte de uma discussão mais geral sobre a historiografia e a forma como movimentos no pós-abolição foram interpretados por autores de peso — como Florestan Fernandes, José Murilo de Carvalho e Gilberto Freyre — para discutir a situação do Maranhão entre 1888 e 1889. Fala então da situação dos republicanos no estado e do movimento que pedia indenizações pelo fim da escravidão e faz uma análise mais detida sobre o massacre.
Esse movimento de zoom, que vai de um cenário mais amplo da história ao dia do massacre, tem efeito oposto no sentido da consolidação do argumento de Gato. Ao mostrar como as memórias do 17 de novembro foram construídas — aliás, silenciadas — a partir de jornalistas, historiadores e escritores que passaram por cima do acontecimento em prol da defesa da república, sua mira vai mais longe. Atinge notáveis como Freyre, cuja obra Ordem e progresso ajudou a consolidar a narrativa da “gratidão” dos negros à princesa Isabel e uma ideia de passividade perante a conquista da liberdade.
Perspectiva negra
O livro conversa com algumas das principais linhas acadêmicas de interpretação do Brasil, seguindo contrapontos levantados por autores como Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento, que buscaram nos quilombos alternativas epistemológicas para reinterpretar a história a partir de uma perspectiva negra. Ao chamar a atenção para os processos de racialização e como se põem em movimento por representações sociais — pela imprensa, pela discussão pública e pela própria violência —, lembra que instituições estatais como exército, polícia e saúde pública passam a operar na lógica racializada, demarcando sob tortura e balas quem é e quem não é negro no Brasil. Mostra também que essa forma de enquadrar essa população, sem diferenciar aqueles que antes eram divididos entre trabalhadores livres, quilombolas, ingênuos, empreendedores e donos de comércio, é, talvez, a principal forma como se constituiu o racismo no Brasil moderno.
Gato também faz uma reconstituição precisa da posição do Maranhão naquele momento: se o estado fora protagonista do capitalismo mundial ao fornecer algodão para a revolução industrial inglesa, em meio século passou a viver uma situação de decadência. Com uma geografia bastante particular, que facilitou inúmeras fugas e aquilombamentos, além de uma cultura de partilha da terra, a zona rural se tornou área de resistência. Sentindo-se para trás em relação à ideologia do trabalho livre que se espalhava pelos estados mais ricos, que já estimulavam a imigração europeia para convenientemente embranquecer o país e trazer uma suposta “ética de trabalho”, a elite do Maranhão passou a culpar a classe ex-escravizada por seu infortúnio. Agora que já não funcionava a lógica de escravização de pessoas, a sua caracterização nos discursos e na mídia como “preguiçosas”, “vagabundas”, “ingratas”, “inconstantes” — no limite, “criminosas” — calhava bem para justificar, para si e para o Brasil, a posição inferior do Maranhão naquele período.
O controle de fontes, a forma de leitura da historiografia brasileira e o frame certeiro da periferia que mira o mundo em O massacre dos libertos são inspiradores para as ciências sociais brasileiras. Não é à toa que a estreia em livro de Matheus Gato acontece numa das coleções mais importantes sobre racismo, “Estudos”, da Perspectiva, que também publicou nomes como Maria Luiza Tucci Carneiro, bell hooks e o próprio Abdias.