O Ministério Público é um órgão de garantia do Estado para o bom funcionamento do regime democrático e de suas instituições e tem sua legitimidade vinculada estritamente ao cumprimento da lei. Ainda que exerça poderes aparentemente contramajoritários, o faz em favor de todos, porque todos têm direitos às garantias previstas na Constituição da República.
Dentre as inúmeras atribuições que o constituinte conferiu ao Ministério Público está o monopólio da ação penal pública, consagrando o sistema acusatório (CF, art. 127, I). Para ser um sistema bem calibrado é fundamental a existência de controles sobre o agente que detém o poder de instaurar a ação penal pública que compreende também o poder de não instaurar a ação penal pública.
Já alertava o velho Montesquieu, resgatado na obra Crises da Democracia, de Adam Zahar que “para que o abuso de poder seja impossível, é necessário que, pela disposição das coisas, o poder faça o poder parar”.
A questão ganha contorno mais difícil quando o poder é conferido a um agente do Estado, presentando determinada instituição, em caráter personalíssimo na esfera da competência do cargo. É o que se dá com o exercício da ação penal pública. A superestrutura legal procura estabelecer meios de contrabalançar os riscos do decaimento institucional decorrente de abusos, que ocorrem tanto por excesso como por omissão. No plano legal desenhou uma arquitetura que visa conter excessos de seus integrantes.
Previu-se um sistema de controle do não-atuar ministerial estabelecendo que órgão de revisão do Ministério Público deverá homologar eventual arquivamento, exercendo assim o controle final da deliberação tomada em caráter personalíssimo pelo representante ministerial. Consta no artigo 28 do Código de Processo Penal, conquanto o dispositivo esteja suspenso pelo STF (Adi 6298/DF), para fins de argumentação o que importa é que as decisões dos membros do MP na sua esfera de atribuição estejam sujeitas a controle de órgão superior, o que se dá em qualquer das redações do art. 28 do Código de Processo Penal.Nem sempre, entretanto, os mecanismos legais colaboram para esse ideal.
Em relação ao Procurador-Geral da República, única autoridade com poder para processar criminalmente o Presidente da República, o sistema constitucional é falho. Isso porque tem prevalecido, no âmbito do STF, o entendimento de que o arquivamento feito pelo PGR deve ser prontamente acatado pelo tribunal.
Dentro do sistema de freios e contrapesos – inerente também às instituições de garantia – é imperioso que o poder do PGR seja objeto de controle pela própria instituição ministerial, preservando, assim, o princípio acusatório.
A ideia que o Procurador-Geral, como chefe do Ministério Público da União, não possa ter seu poder contrastado não combina com o regime republicano. Regime republicano é regime de responsabilidade, cravou de forma indelével Geraldo Ataliba. O esquema legal deve favorecer a objetividade jurídica da lei em detrimento da vontade arbitrária do agente, e para isso ocorrer é fundamental que todo aquele que exerça parcela do poder estatal esteja submetido a sistemas de controle, corolário da ideia de que nenhum agente público é anjo – “se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos. Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os controles internos e externos”, escreveu James Madison em O Federalista. Tanto mais se considerar o caso brasileiro.
O PGR foi indicado pelo PR sem submeter-se sequer à lista tríplice, que condiciona, por exemplo, a escolha dos chefes dos ministérios públicos estaduais. Tal como está o sistema colabora para prevalência de relações de caráter pessoal, que desvirtua a institucionalidade. O perigo da coisa descambar para o predomínio de vínculos pessoais que se sobrepõem à impessoalidade da lei, típico do chamado “jeitinho brasileiro”, que funda e deforma o caráter nacional, é grande.
A inação do atual PGR em se posicionar firme e resolutivamente contra interesses do atual PR, tem se traduzindo num misto de vergonha e indignação junto ao sistema de justiça. Talvez o reverbério vindo do próprio STF de que o PGR não pode ser comportar como um “espectador geral da República”, represente como poucos o sentimento de desassossego da sociedade brasileira. Esse sentimento ganha contornos dramáticos no momento em que a CPI da Covid-19, do Senado Federal, deve indiciar autoridades com foro por prerrogativa de função no STF, por ações e omissões criminosas durante a respectiva pandemia, cujas providências estarão nas mãos do PGR.
Não deveríamos viver essa angústia, verdadeiro frisson, pela ação de uma autoridade pública. Para se evitar inclusive as heterodoxias que se anunciam aqui e ali pós CPI da Covid – comissão externa de acompanhamento das investigações ministeriais ou ainda uma espécie de ação penal popular subsidiária da pública – o Supremo Tribunal Federal bem que poderia dar efetividade ao vetusto ensinamento da ciência política, de que o poder deve ser controlado pelo poder. Afetar ao Conselho Superior do Ministério Público Federal – órgão colegiado de cúpula da PGR – que já ostenta a competência para conhecer de investigação por crime comum contra o Procurador-Geral (LC 75/93, art. 57, X), o controle sobre eventual não-atuar do PGR seria um passo importante nessa direção.
Com isso, o STF faria justiça aos sistemas de contenção próprios de um regime republicano, estabelecendo limites ao poder acusatório exercido pelo Ministério Público, além de bloquear eventuais “saídas” fora do figurino legal. Sociedade alguma pode ficar ao sabor do acaso. Um bom sistema constitucional não pode depender de um procurador x ou y, mas deve ter regras boas e duradouras que prevaleçam aquém e além do fulano que titularize cargo público.
*Pedro Barbosa Pereira Neto é procurador regional da República em São Paulo e associado do Movimento do Ministério Público Democrático