Em meados dos anos 1970, numa das muitas viagens que fez à Europa, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns encontrou-se com um educador pernambucano que vivia no exílio em Genebra. Esse educador tinha a mesma idade e o mesmo prenome que ele. Mais de uma década antes, em 1963, havia conduzido uma experiência inédita de educação popular na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, alfabetizando 300 cortadores de cana em apenas 40 horas-aula. O resultado lhe rendera um convite do Governo João Goulart para que ele coordenasse um amplo projeto nacional de alfabetização, com o objetivo de formar educadores e aplicar o método revolucionário em 20 mil “círculos de cultura” pelo país. No início de 1964, os primeiros núcleos apenas começavam a funcionar quando veio o golpe. Preso por 70 dias sob uma inexplicável acusação de traição, Paulo Freire foi exilado na Bolívia, estabeleceu-se no Chile por cinco anos, tornou-se professor visitante por um ano na universidade de Harvard, nos Estados Unidos, para chegar, finalmente, a Genebra em 1970.
Naquela cidade suíça, sede da ONU, Paulo Freire foi trabalhar como consultor educacional para o Conselho Mundial de Igrejas, o que explica o encontro com Dom Paulo, nomeado arcebispo de São Paulo em 1970. Paulo Freire ficou fascinado com o “cardeal da Esperança”. Sabia de sua coragem e de sua ousadia nos diversos episódios em que se colocara ao lado dos presos políticos, dos torturados, dos oprimidos, e das muitas denúncias que fazia, no Brasil e no exterior, dedurando a violência de Estado e as violações de direitos praticadas pela repressão. Fora assim na prisão de Madre Maurina, na missa de sétimo dia do estudante Alexandre Vannucchi Leme e, mais recentemente, no ato ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog e na morte do operário Manoel Fiel Filho. Dom Paulo, por sua vez, encantou-se com o educador Paulo Freire, seu currículo, seu vasto conhecimento. Seu livro Pedagogia do Oprimido, àquela altura, já tinha sido publicado em dezenas de países. Escrito em 1968, nasceu primeiro em espanhol e em inglês, e só depois em português, porque somente após o início da abertura lenta e gradual proposta pelo general-presidente Ernesto Geisel, em 1974, a obra pôde ser publicada no Brasil.
Os dois Paulos estiveram juntos numa agenda do Conselho Mundial de Igreja e, para estender a conversa, Paulo Freire e dois amigos acompanharam Dom Paulo ao aeroporto. Enquanto o cardeal aguardava a última chamada para o embarque, eles aproveitariam para terminar o assunto. Papo vai, papo vem, Dom Paulo perdeu o voo. Sentindo-se culpado, Paulo Freire fez o que estava ao seu alcance para minimizar os efeitos daquela gafe. Remarcou o bilhete para o dia seguinte, telefonou para São Paulo para comunicar o ocorrido à Cúria Metropolitana, verificou com a equipe do cardeal se havia alguma restrição alimentar importante e, finalmente, levou Dom Paulo para comer uma bacalhoada e pernoitar em sua casa.
O caso foi contado por Paulo Freire no seminário “O Simbólico e o Diabólico na Política”, produzido pela PUC de São Paulo e realizado no Tuca, o teatro da universidade, em 18 de setembro de 1996, com a presença dos dois Paulos e a moderação do filósofo Mário Sérgio Cortella. A gravação desse encontro memorável está disponível aqui (Paulo Freire e Dom Paulo participam a partir do minuto 20).
Paulo Freire nasceu no mesmo ano, no mesmo mês, cinco dias depois de Dom Paulo. Que composição extraordinária os astros desenhavam no céu do Brasil em setembro de 1921 para proporcionar uma explosão de afeto e sabedoria como a representada por essa dupla? Patrono da Educação Brasileira, autor lusófono mais citado em publicações acadêmicas no mundo, dono de 35 diplomas de doutor honoris causa entregues por universidades da Europa e da América, nome mais vezes atribuído a escolas pelo território nacional, Paulo Freire completaria 100 anos neste 19 se setembro, se estivesse vivo. O centenário de Dom Paulo, por sua vez, foi comemorado no dia 14. Juntos, os dois Paulo somam duzentos anos de ética, dignidade, empatia, resiliência e profundo engajamento na luta por liberdade, direitos humanos, emancipação, justiça social e democracia.
É inacreditável que, no Brasil de Bolsonaro, a torpe ditadura contra a qual os dois Paulos tanto lutaram seja agora elogiada, desejada, apologizada pela quadrilha que tomou de assalto o poder e pelos delinquentes que apoiam a nefasta necropolítica que rege o Estado brasileiro em 2021. É igualmente inconcebível que uma juíza de direito tenha tido que baixar uma liminar proibindo o Governo Federal de “atentar contra a dignidade” de Paulo Freire. Porque é isso o que essa turma quer, é isso o que esses ogros buscam. Destruir a imagem, a reputação, a dignidade de Paulo Freire, uma vez que sua obra, seu legado, jamais conseguirão chamuscar. Pessoas como Dom Paulo e Paulo Freire, que dedicaram sua vida à coragem e à esperança, não deveriam ter sobrevivido à ditadura, eles pensam. É preciso, antes tarde do que nunca, fazer “o trabalho que o regime militar não fez”, como aventou, certa feita, o pior presidente do Brasil. E, no entanto, Paulo Evaristo e Paulo Freire resistem, persistem e insistem. Estão vivos, mais vivos do que aqueles que tentaram e ainda tentam calar sua voz e apagar sua história.
“Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião”, cantou, no ano do golpe, o poeta do morro José Flores de Jesus – um certo José que, de tão acanhado na juventude, virou Zé Quieto para os amigos e Zé Keti para o resto do mundo. Nascido em 16 de setembro de 1921, Zé Keti também completaria 100 anos nesta semana. Em dezembro de 1964, ele subiu no palco do Teatro de Arena, no Rio de Janeiro, e deu seu recado ao lado da carioca Nara Leão e do maranhense João do Valle: “Se não tem água, eu furo um poço. Se não tem carne, eu compro um osso”. No ano seguinte, no petardo Acender as velas, outro recado para lá de atual, desta vez na voz de Elis Regina: “E a gente morre sem querer morrer…”. É, Zé, parecia que você estava adivinhando.