Com indenizações pagas pela União por benfeitorias, invasores insistem em permanecer em terra indígena demarcada. Assassinatos são anunciados. Em todo o país, mobilizações continuam. Em Brasília, o Acampamento Luta pela Vida se estende à 2ª Marcha das Mulheres Indígenas. Na quarta-feira, STF julga marco temporal
“Vivemos em conflito. Pode haver mortes a qualquer momento”, adverte Chiquinho Arara, cacique da Terra Indígena Arara do Rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo (AC), na fronteira com o Peru. O território é demarcado desde 2011 e já foram feitos pagamentos pela União para indenização de benfeitorias de ocupantes, entre 2013 e 2015, mas os invasores se sentem amparados pela omissão do Estado, constroem moradias e chamam indígenas para brigas em sua própria terra. Há denúncias protocoladas pelo povo originário inclusive de que a área está sendo usada como rota do narcotráfico.
A Funai não socorre aos apelos já feitos por Chiquinho. A Polícia Federal não tomou providências. A Justiça se mostra ineficiente. Neste ano, dois indígenas se enforcaram. Um homem de 70 anos (Francisco Eugênio Moreira) e uma jovem de 18 (Alice Alves). Um dos invasores aproveitou o momento para dizer que, enquanto eles não os aceitarem, “os indígenas continuarão se matando”. As lideranças estão sendo ameaçadas de morte por denunciar os problemas ilícitos que ocorrem na terra indígena. “Não existe polícia”, exclama o cacique. Não são tomadas providências nem mesmo diante das notícias de que a região se transformou em ponto de tráfico de drogas.
Madeireiros peruanos – Chiquinho Arara estava em Brasília na semana passada, no Acampamento Luta pela Vida, montado em 22 de agosto e que teve a participação de 6 mil indígenas, de 176 povos, de 20 estados. Ele anda com as denúncias embaixo do braço e aproveitou para levá-la a parlamentares do Acre no Senado, pois para os órgãos federais no estado já as espalhou a todos.
Constam das denúncias protocoladas em órgãos públicos que uma das famílias invasoras trabalha com madeireiros peruanos, com acesso por uma trilha no território indígena até o país vizinho. Está documentado um fato com suspeita de assassinato, com os nomes dos responsáveis por terem levado o indígena Gelson Macedo, de 39 anos, para trabalhar no Peru. “Não retornou mais para a aldeia do povo Apolima-Arara. A informação que tivemos é que foi assassinado no Peru e não sabemos o motivo. Pedimos às autoridades que investiguem o caso, pois devem explicação não apenas à comunidade, mas às autoridades brasileiras”.
Entra e sai na pandemia – Nos documentos encaminhados a órgãos públicos, os indígenas reforçam a Portaria 419, de março de 2020, baixada pela Funai impedindo a entrada de pessoas estranhas em territórios indígenas, para evitar a propagação da pandemia.
“Além de estranhos, eles são invasores de nosso território há muito tempo. Facilitaram para a chegada do Covid-19. Mesmo sem autorização das lideranças, se aproximam das aldeias, na maioria das vezes consumindo bebidas alcoólicas que são ofertadas para os indígenas. Com isso, mais de 30 casos foram confirmados na nossa aldeia”. O povo é constituído por 462 pessoas dentro do território e 180 que moram em áreas urbanas. Há sete famílias estranhas ao povo indígena morando em suas terras.
Indenizações pagas a ocupantes – O cacique veio acompanhar o julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) marcado para continuar nesta próxima quarta-feira, e para protestar contra a política governamental genocida que estimula os invasores a fazerem o que quiserem. “Uma das moradoras tem R$ 160 mil depositados em juízo como indenização de benfeitorias, mas não quer sair e não sai. Não tem Polícia Federal para tirar”, conta ele.
Segundo a Constituição, são nulos títulos de propriedade sobre territórios indígenas, mas é admitido o pagamento pela União de benfeitorias a ocupantes de boa-fé. “Nesse caso, já se trata de má-fé”, observa Chiquinho Arara. Mais de 30 famílias foram indenizadas para desocupar a Terra Indígena Arara do Rio Amônia. Os valores variam de R$ 8 mil a R$ 160 mil.
O filho da moradora que tem a maior indenização paga em juízo também está de olho em um quinhão no território dos Arara do Amônia. Ele não conseguiu ser listado como ocupante de boa-fé porque vivia no Peru e quando estava no local morava com a mãe. Porém, retornou e começou a construir uma casa na margem do rio. Em agosto de 2020 foi realizada uma rápida fiscalização pela Funai com soldados do Exército e ele foi advertido que não poderia continuar a obra, que ficou parada por cinco meses, mas concluída em fevereiro de 2021. Agora ele mora na nova casa.
Provocações – Chiquinho conta que jovens indígenas estavam mariscando no rio quando o morador os provocou para que lhes tomassem a motosserra que tinha nas mãos, o que não aconteceu. O cacique faz o relato com emoção. “Ainda bem que eu não estava lá, pois se estivesse haveria confronto”. Ele diz que esse mesmo homem manda recados e em outra vez atiçou os rapazes para que ateassem fogo em sua própria casa.
“A gente tem aguentado muitas coisas, pra evitar confronto. O que vale é a vida, é única. Vamos para a Justiça e a resposta é esperar, esperar, esperar. Antes, a Funai (Fundação Nacional do Índio) fiscalizava. Com a pandemia se ausentou praticamente100%. Os invasores ainda trazem pessoas de fora, para caçar até com cachorro, pescar, tirar madeira, desmatar, fazer tudo o que não presta. A fiscalização cabe à Funai, ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis), mas não existe. Essa é a política de Bolsonaro. A favor dos invasores. Bolsonaro quer enfraquecer nosso movimento”, enfatiza Chiquinho Arara.
Para conclusão de todo processo demarcatório falta apenas a homologação, cujo processo está há seis anos parado na Casa Civil. “Depende somente da Presidência da República”, enfatiza o cacique Arara.
Marco temporal – A Terra Indígena Arara do Rio Amônia é um dos muitos exemplos da audácia de invasores que levam doenças e ameaças de morte de várias formas aos povos indígenas, sem que os órgãos públicos se mexam para qualquer tipo de providência. Por isso a grande expectativa é que nesta quarta-feira o STF vote favorável à proteção dos territórios indígenas.
Depois de quatro vezes adiado nos últimos dois meses, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento mais importante da história recente para todos os povos originários do país: o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 que trata do marco temporal, defendido por ruralistas que desejam que o direito a territórios seja restrito a povos que os ocupavam ou disputavam, física ou judicialmente, antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição do Brasil.
Essa tese ficou em evidência no processo demarcatório da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) e passou a ser usada pelo Executivo e em cerca de 300 processos judiciais no país. Em maio do ano passado, o STF suspendeu o Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União, que tentava institucionalizar o marco temporal como norma nos procedimentos administrativos de demarcação.
O julgamento da quarta-feira, será a partir do pedido de reintegração de posse movido pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-La Klãnõ. Um dos argumentos dessa ação é o marco temporal. Esse processo foi reconhecido em 2019 pelo STF como de “repercussão geral”, o que faz com que seja parâmetro para todas as decisões judiciais no país a partir do resultado da quarta-feira.
Marcha das Mulheres Indígenas – Depois da suspensão do julgamento que começou e durou apenas 22 minutos na quinta-feira (26/8), um grupo de 1 mil indígenas do Acampamento Luta pela Vida resolveu permanecer em Brasília, para acompanhar a sua continuidade nesta próxima quarta, dia 1º de setembro. Há previsões de que os trabalhos no STF possam continuar na semana que vem, coincidindo com a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas, que acontecerá entre 7 e 11 de setembro. Elas começam a chegar nesta segunda-feira (30/8).
Protocolos sanitários – Os encontros obedecem aos protocolos sanitários, com a recomendação de somente participarem pessoas vacinadas, com testagens de Covid-19 realizadas antes e depois do evento e distribuição de máscaras com qualidade recomendada por especialistas em saúde. Agentes indígenas têm o apoio de equipes de instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade de Brasília.
Avalanche de projetos devastadores – O Acampamento Luta pela Vida e sua continuidade com a Marcha das Mulheres Indígenas tem também o objetivo de protestar contra o Legislativo. Mais de 100 projetos de leis e apensados ameaçam direitos garantidos pela Constituição (para saber mais, leia a Parte III desta série).
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Esta série é promovida por parceria entre o Jornal Brasil Popular e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) para a construção de conteúdos, como matérias sobre garimpos, desmatamentos e invasões a territórios indígenas. Leia publicações anteriores:
Introdução – ENTREVISTA | “Pelo menos 300 parlamentares são anti-indígenas”, avalia Cimi
Parte I – Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil:
Um desaforo impresso ao ICMBio” – furos de balas na placa da estação ecológica, unidade de conservação proibida a visitantes não autorizados
Parte II – Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil:
Ao mesmo tempo em que os índices de desmatamento atingem sucessivos recordes, processos demarcatórios estão suspensos há anos. Funai vira cabide de emprego de ruralistas
Parte III – Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil: