A inação de Augusto Aras em relação às ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro despertou o debate nos bastidores de STF (Supremo Tribunal Federal), Ministério Público Federal e Congresso Nacional sobre maneiras de esvaziar os superpoderes do procurador-geral da República.
A discussão gira em torno do fato de o ocupante do cargo ser a única autoridade que pode tomar decisões individuais que não são passíveis de recurso.
Ao contrário do que ocorre na base do Ministério Público, não há previsão legal expressa sobre a revisão de manifestações do procurador-geral quando ele opina, por exemplo, pelo arquivamento de uma denúncia contra alguma autoridade com prerrogativa de foro no Supremo.
Nas instâncias inferiores, os pareceres de procuradores são submetidos à homologação das câmaras de coordenação e revisão compostas por subprocuradores-gerais.
O Supremo sempre entendeu que o pedido de arquivamento apresentado pelo chefe do MPF é de acolhimento obrigatório pela corte, uma vez que não existe a possibilidade de sua reavaliação por outro órgão. A corte, no entanto, pode alterar essa regra.
Diante da omissão de Aras frente à escalada dos ataques de Bolsonaro a outras instituições, ministros passaram a cogitar a possibilidade de aproveitar um julgamento marcado para novembro para mudar a jurisprudência sobre o tema.
Isso ocorreria na análise de uma ação sobre a figura do juiz das garantias, item do pacote anticrime aprovado pelo Legislativo.
Quando suspendeu a implementação do juiz das garantias, o presidente do tribunal, ministro Luiz Fux, também sustou os efeitos de um artigo que estabelece a necessidade de submeter decisões de integrantes do Ministério Público pelo arquivamento de inquéritos à “instância de revisão ministerial”.
Parte do Supremo avalia que a lei aprovada pelo Congresso e sancionada por Bolsonaro é genérica e não tem limitação de alcance, abrindo brecha para que seja aplicada também ao PGR.
Uma alternativa aventada nos bastidores do STF para não comprar uma briga declarada com Aras seria derrubar a decisão de Fux e retomar a validade do artigo sem entrar em detalhes sobre como ele deve ser implementado.
Assim, ficaria a cargo do CSMPF (Conselho Superior do Ministério Público Federal), que está dividido ao meio em relação ao apoio à cúpula da PGR, a regulamentação do dispositivo.
Há setores no MPF convencidos de que é preciso construir um sistema que permita a revisão de atos do procurador-geral. Uma das possibilidades é submetê-los à revisão do CSMPF, órgão máximo de deliberação administrativa na instituição.
Presidido pelo procurador-geral, o conselho é composto por outros dez subprocuradores-gerais da República.
Parte dos conselheiros assinou na sexta-feira (6) a carta pública em que Aras foi cobrado a defender o Supremo e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) dos ataques em série de Bolsonaro. O presidente tem repetido que, sem voto impresso, não haverá eleição em 2022.
A carta afirmava que “incumbe prioritariamente ao Ministério Público a incondicional defesa do regime democrático, com efetivo protagonismo, seja mediante apuração e acusação penal, seja por manifestações que lhe são reclamadas pelo Poder Judiciário”.
No mês passado, cinco integrantes do Conselho Superior do MPF já haviam pedido a Aras que investigue o presidente pelo crime de abuso de poder.
“As declarações do sr. presidente da República parecem ultrapassar os limites do mero [e intangível] exercício do direito constitucional à liberdade de expressão”, afirmaram os conselheiros.
Na semana passada, porém, em um gesto raro, o procurador-geral se manifestou contra os interesses de Bolsonaro. Aras opinou pelo não arquivamento das investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro no caso da “rachadinha” do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).
Em parecer enviado ao STF, Aras disse que não identificou ilegalidades nas apurações dos promotores de Justiça do Rio que miram o senador.
A ideia de criar uma instância revisora a Aras ganhou força principalmente depois dele pedir o arquivamento do inquérito dos atos antidemocráticos.
Nos bastidores do STF e da PGR, houve duras críticas à decisão por entender que a investigação era importante para impor freios à ofensiva bolsonarista contra as instituições.
Aras pediu que fosse arquivada a apuração relativa a deputados, que têm foro especial perante o STF, e que outros seis casos fossem remetidos à primeira instância.
Relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes driblou a Procuradoria e determinou o prosseguimento da investigação no Supremo.
O ministro arquivou a apuração contra os congressistas e disse que a competência para continuar a investigação sobre as outras situações seria do STF, por ter relação com o inquérito das fake news.
Assim, abriu outro inquérito com conteúdo muito similar ao primeiro. A decisão de Moraes foi considerada nos bastidores um drible à PGR, assim como ele já havia feito em operações contra fake news e também no caso do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles.
A ordem de Moraes, portanto, fugiu dos parâmetros estabelecidos no STF para atuar em casos como este. Por isso, levantou o debate sobre a necessidade de a própria PGR ter mecanismos de revisão de decisões de seu chefe, a fim de evitar decisões heterodoxas do Judiciário.
A discussão ganha força porque conta com um argumento forte em seu favor: hoje, o procurador-geral da República é o único servidor que pode tomar decisões individuais que não são passíveis de recurso.
Até mesmo decisões de ministros do STF, quando adotam posições polêmicas, precisam ser confirmadas por colegiado.
No STF e entre integrantes da Procuradoria que não são ligados a Aras, há a compreensão de que o Supremo é o único meio de implementar a medida para conter o atual procurador-geral.
Isso porque, a mudança enfrenta resistência no Congresso. Líderes do centrão, que ditam o ritmo dos trabalhos na Câmara e no Senado, são simpáticos a Aras.
Como muitos deles são investigados, dependem do procurador-geral para verem inquéritos arquivados. Procurado pela Folha, Aras não quis comentar o assunto.
CASOS SENSÍVEIS DE BOLSONARO E ALIADOS COM ATUAÇÃO DA PGRÇ
STF
Prevaricação no caso da vacina Covaxin
A ministra Rosa Weber determinou no início do mês de julho a abertura de inquérito para apurar a acusação de que o presidente Jair Bolsonaro prevaricou no caso da compra da vacina indiana ao ser informado sobre irregularidades no processo de aquisição e não acionar órgãos de investigação
Interferência no comando da PF
Apuração tramita no STF após o ex-ministro da Justiça Sergio Moro denunciar tentativa de Bolsonaro de implementar mudanças na cúpula da Polícia Federal com o objetivo de proteger familiares e aliados em investigações. O tribunal definirá em setembro o modelo de depoimento que o chefe do Executivo prestará à PF
Quadrilha digital
Fruto do inquérito dos atos antidemocráticos, a apuração busca identificar o grupo por trás de ataques à democracia na internet. Apoiadores do presidente são alvos. Relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes fez menção ao próprio Bolsonaro e a seus filhos na decisão que mandou a PF investigar. A polícia abriu inquérito em julho
Fake news
Investigação que tramita no Supremo desde 2019 e já resultou em busca e apreensão contra apoiadores do chefe do Executivo. Mira os responsáveis por ataques virtuais a integrantes da corte. Também relator, Moraes não emitiu, até o momento, sinais de que encerrará o caso logo. É provável que prossiga 2022 adentro
TSE
Disparos em massa via WhatsApp
Investigação da corte eleitoral iniciada nas eleições de 2018 após a Folha revelar a existência de um esquema bancado por empresários apoiadores de Bolsonaro para o disparo em massa de fake news. Moraes autorizou o compartilhamento de informações dos inquéritos da fake news e dos atos antidemocráticos com o TSE
CPI da Covid
Relatório final
Os integrantes da comissão conduzem linhas de investigação que podem levar a acusações contra o presidente e seus auxiliares. As conclusões da CPI serão encaminhadas à PGR, para análise e eventual instauração de procedimentos próprios na área criminal