Dia 28 de junho celebrou-se o Dia Internacional do Orgulho LGBTI em todo o mundo. Data em que se defende a vida, os direitos, a liberdade de orientação sexual, identidade e expressão de gênero.
É crescente os números de instituições, entidades, organizações, marcas, personalidades que se mobilizam e se expressam contra a discriminação LGBT nessa data. No mundo do esporte não é diferente. No futebol brasileiro, diversos clubes se posicionaram em suas redes sociais contra a discriminação de pessoas LGBTIs e alguns foram além, utilizando as cores do arco-íris nos números das camisas e nas braçadeiras de seus respectivos capitães.
Na véspera do Dia Internacional do Orgulho LGBTI (dia de uma partida contra o Brusque Futebol Clube, pelo Campeonato Brasileiro de Futebol, série B), o Clube de Regatas Vasco da Gama, empenhou uma série de ações, assumindo uma importante tarefa de celebração e conscientização dessa importante e necessária data no futebol, ambiente muitas vezes hostil à diversidade sexual, de forma mais contundente que os demais clubes. Foram elas:
- A construção de um mosaico na histórica social do clube, exibindo a palavra “Respeito”, acompanhado pela bandeira símbolo da causa LGBTI
- A elaboração de um significativo Manifesto, intitulado: “Movimento contra a homofobia e a transfobia”, onde o clube reconhece a íntima relação do esporte com a sociedade e conclama para uma mudança de atitude preconceituosa dos esportistas, sobretudo no universo do futebol. Nesse mesmo texto há referência a uma propalada propensão do clube para o combate ao preconceito, assim como se deu em 1923 através da inclusão de jogadores pobres, negros e mestiços ao seu elenco campeão daquele ano, em que também foi necessário um Manifesto que ficou conhecido como “Resposta histórica contra o racismo”.
- Criação de uma camisa especial, em edição única, desenvolvida para marcar a posição do Clube na luta contra a discriminação LGBTI. A mesma foi colocada à venda nas lojas físicas e virtuais do clube, e parte da verba arrecadada com as vendas foi destinada à instituição Casa Nem, um centro de acolhimento que abriga pessoas LGBTI em situação de vulnerabilidade social.
- Colocação das bandeirinhas de campo nas cores do arco-íris, símbolo do movimento.
- A criação e divulgação de um vídeo, onde ilustres vascaínos, falavam da sua orientação sexual e identidade de gênero e se afirmavam torcedores (as) do Vasco.
Além das ações supracitadas, o Clube comprometeu-se com atuação contínua no combate à discriminação LGBTI, como a construção de Políticas de Inclusão, Respeito e Diversidade, o direito ao nome social na carteirinha de sócio (a) torcedor (a) e uma campanha educativa para quando o público voltar aos estádios contribuindo para a mudança em um ambiente propagador de preconceito. O Clube também se comprometeu com a inserção de conteúdos transversais sobre gênero, sexualidade e diversidade seja parte do projeto pedagógico do Colégio Vasco da Gama, que funciona no interior do Clube.
O Presidente do Vasco, Jorge Salgado, assumiu a presidência do Clube no início do corrente ano, através de mais uma polêmica eleição interna. Uma das primeiras ações de sua gestão foi a criação de uma Vice-Presidência de Responsabilidade Social e uma Diretoria de Integridade do Vasco. Em termos de planejamento desse setor do clube estão: uma relação mais orgânica com a Barreira do Vasco, comunidade situada no entorno de São Januário, estádio do Vasco; a criação de um livro de crônicas sobre a “Virada Histórica” [1]; a criação de um tour virtual por São Januário.
Há que se destacar também o inédito apoio que o futebol feminino do Clube está recebendo, com a criação de um Centro de Treinamento exclusivo, e a sua autossustentabilidade a partir de uma parceria com a AmBev.
Ao acompanharmos nas redes sociais e nos canais informativos do Clube cada anúncio de uma dessas ações, percebemos as mais diversas reações. Há diversos comentários de que tais ações seriam supérfluas e a real necessidade do Clube seria uma equipe competitiva. Alguns chegam a dizer que estão constrangidos em torcer pelo Clube e se mostram verdadeiramente contrários às políticas afirmativas, inclusivas e de enfrentamento às discriminações. Há também os que apoiam, relacionando essas ações com o histórico de um Clube contra o preconceito e a favor da inclusão.
Entretanto, essa discussão que tinha um caráter endógeno, que circulava com maior ou menor ímpeto entre vascaínos (as), ganhou amplitude, sobretudo a partir da confecção e divulgação da camisa com as cores do arco-íris no lugar do preto da faixa que cruza a camisa branca e o anúncio da sua utilização na partida contra o Brusque Futebol Clube.
Além do grande rebuliço que a ação causou nas redes sociais, ocorreu também uma polêmica interna, quando o capitão da equipe, o jogador evangélico Leandro Castán, publicou no seu Instagran, texto do primeiro livro da Bíblia Sagrada:
“Deus abençoou Noé e seus filhos, dizendo-lhes: Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra. Todos os animais da terra tremerão de medo diante de vocês […] porque à imagem de Deus foi o homem criado. Mas vocês sejam férteis e multipliquem-se; espalhem-se pela terra e proliferem nela”.
O jogador ainda fez uma aberta crítica à utilização do arco-íris como símbolo do movimento LGBTI. Escreveu o zagueiro:
“Quando eu trouxer nuvens sobre a terra e nelas aparecer o arco-íris, então me lembrarei da minha aliança com vocês e com os seres vivos de todas as espécies”.
A partir dessa posição pública do atleta, o assunto ganhou evidência nas redes sociais. Castán recebeu apoio, mas ampla maioria de críticas nos comentários dos (as) torcedores (as) e criou-se também um mal estar no plantel da equipe.
Por obra do destino, o atacante argentino, Gérman Cano, inaugurou o placar na partida contra o Brusque e ao comemorar o gol, arrancou a bandeira de escanteio, com as cores do arco-íris, e a balançou com entusiasmo, nítida homenagem ao movimento LGBTI, desenhando na história do futebol uma forte imagem de inclusão, diversidade e respeito, que jamais será esquecida. O jogador que, diga-se de passagem, só foi abraçado na ação pelos jogadores Martin Sarrafiore e Matías Galarza, o primeiro argentino e o segundo paraguaio, fez, através do seu gesto, com que a discussão em torno da relação futebol e respeito à diversidade não tivesse mais limites. As belas imagens captadas pelos fotógrafos e cinegrafistas correram o mundo e uma reflexão foi apresentada por diversas pessoas: essas ações adiantam alguma coisa?
Nesse artigo, tentamos ousadamente responder a essa indagação e afirmamos que sim, adiantam. Em um ambiente nacional de polarização de posições pessoais e coletivas a respeito dos direitos humanos, a atual gestão do Clube de Regatas Vasco da Gama, optou por aprofundar o protagonismo social e inclusivo que o Clube ecoa historicamente, correlacionando a luta pelos direitos LGBTIs aos episódios ocorridos em 1923 e 1924, que ficaram marcados na história do futebol como enfrentamento ao racismo, na contramão da maioria dos clubes brasileiros. Todavia, mesmo sendo torcedor e torcedora do clube, não podemos nos despir do conhecimento sobre uma construção narrativa que existe a partir dos episódios de 1923 e 1924 e de que certamente, a maior preocupação de quem era responsável pelas ações do Clube na época não fosse o combate ao racismo.
É importante ressaltar que há, para atual gestão do Clube, uma busca pela construção de uma nova imagem do Clube, marcando a diferença entre o discurso da atual gestão e os valores que imperaram no comando do Clube e do próprio futebol, através de anos. Nesse episódio é possível reconhecer nitidamente a opção por valores de valorização das diferenças em oposição a outros grandes clubes que se escoram nos valores conservadores e reacionários, em função de uma relação íntima com o atual Governo Federal, que busca se afirmar pelo lado oposto.
É de grande valor que atletas profissionais de grande visibilidade, formados em ambientes heteronormativos, conservadores, homofóbicos e misóginos, assumam postura crítica e de defesa a movimentos de lutas por direitos sociais.
No mesmo domingo da partida contra o Brusque, o atleta João Pedro, que estreou no time dos profissionais do Vasco, publicou em suas redes sociais um vídeo apresentando sua mãe e a companheira dela, vestidas com a camisa utilizada pela equipe naquele dia, com as cores do arco íris. O jovem, formado nas categorias de base do Clube, relatou o orgulho que sentia, a importância das duas mulheres na sua vida, a sensação de pertencimento conquistada com essa ação e reforçou sua configuração familiar.
Ainda na esteira de ações de combate à discriminação LGBTI, o goleiro Halls, de 22 anos, pediu para usar a camisa de número 24, número culturalmente associado aos gays, por causa do que representa no “Jogo do Bicho”. Tal atitude foi tomada em função da polêmica estabelecida em torno da seleção brasileira de futebol masculina, que foi alvo de representação da FIFA por não utilizar essa numeração.
Cremos que o que vem sendo realizado pelo Clube de Regatas Vasco da Gama nesses últimos meses no que tange ao reconhecimento da imbricada relação do futebol com a sociedade e do compromisso que seus atores e atrizes possam ter com a mudança de atitude preconceituosa, não é pouca coisa. Ações como essas reverberam em toda a sociedade, tem capilaridade, atingem os mais distantes rincões do país e contribuem para que o futebol não seja reprodutor dos padrões discriminatórios sócio histórico culturais da sociedade, mas que contribua para a mudança de paradigmas, de novas formas de agir, de valorização da diversidade sexual e de gênero, desconstruindo preconceitos, enfrentando a discriminação e colaborando para a construção de relações humanas pautadas em princípios de igualdade.
SILVA, Camila Maria Moreno da; SILVA, Silvio Ricardo da. Essas ações adiantam alguma coisa? Uma análise sobre as ações do Clube de Regatas Vasco da Gama no Dia Internacional do Orgulho LGBTI. Ludopédio, São Paulo, 2021.
Silvio Ricardo da Silva é coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e professor do Departamento de Educação Fisica da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG.
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