TÂNIA MARIA SARAIVA DE OLIVEIRA*
As diferentes formas de expressão da representatividade são temas que importam muito ao debate da legitimidade na democracia. Em situações concretas, como na ocupação de cargos públicos não eletivos, mas por designação, é possível travar essa discussão com novos matizes, desnaturalizando o formato e colocando interrogações na ordem do dia, que aprofundem a percepção sobre dificuldades e dilemas das específicas normas a que nos vinculamos.
Candidaturas chamadas de simbólicas não são uma novidade na história, no Brasil ou fora dele. As questões que delas emergem não se atêm à lógica dos envolvidos, mas evocam temas que merecem ser abordados em perspectiva crítica.
Em 1973, em plena ditadura militar e como forma de denunciar o regime e a farsa das eleições indiretas, Ulysses Guimarães lançou sua candidatura simbólica à Presidência da República. Realizou comícios e carreatas nas principais cidades do país como se a eleição dependesse dos votos dos cidadãos; uma forma inteligente de lutar pela redemocratização do país. Em consequência, o MDB, único partido de oposição permitido, elegeu 16 senadores das 22 vagas em disputa e 161 vagas das 364 cadeiras na Câmara dos Deputados. Gestava-se o embrião da luta pelas Diretas, ocorrida 10 anos depois.
Em abril de 2021, a ex-presidenta do Equador, Rosalía Arteaga, foi lançada ao cargo de secretária-geral da ONU com uma candidatura simbólica promovida pela sociedade civil. O nome de Rosalía foi apresentado pela Forward — organização não governamental sediada em Londres que tenta mudar o processo de escolha das Nações Unidas — e aprovado pela internet com 98,3% dos votos.
Em 2017, a professora da UnB, Beatriz Vargas, foi lançada “anticandidata” ao STF, quando Michel Temer indicou Alexandre de Moraes para a vaga do falecido ministro Teori Zavascki.
A discussão dessa opção não se restringe ao plano da política. A dimensão simbólica opera como uma espécie de princípio norteador de processos sociais que dão sentido às concepções sobre prática de representação.
Muitos atores do campo jurídico e político se perguntam por que os movimentos sociais, encabeçados por entidades de juristas, lançam uma anticandidatura ao Supremo Tribunal Federal (STF), se sabem que não há chances de emplacar o nome?
Existem vários dados fundamentais de análise. O espaço de elaboração da política, em suas dimensões explícitas e implícitas, não pode ser entendido sem que se recuperem outras perspectivas que fazem parte da trajetória dos grupos envolvidos na questão.
Isso porque o oferecimento ao debate público de uma anticandidatura ao STF é expressão de um percurso anterior, que se fundamenta na busca de uma identidade referenciada na relação entre representante de um pensamento jurídico que se volta à defesa do próprio Tribunal, como corpo orgânico próprio de afirmar a Constituição Federal, seus elementares princípios garantistas e conjunto de direitos.
As entidades do mundo jurídico que se reuniram para lançar o nome de Soraia Mendes ao Supremo não estão, neste momento, fazendo um questionamento ao poder conferido ao Presidente da República para nomear. Faz parte da estratégia de luta e disputa política de contraposição ao nome de André Mendonça, indicado por Jair Bolsonaro, que para além da forma, não possui os pré-requisitos de legitimidade para ocupar o cargo.
A anticandidatura de Soraia Mendes, uma jurista negra, pós-doutora, escritora, militante, que se coloca como advinda de setor excluído de benefícios sociais e políticos, oportuniza discussões de rica complexidade. Ao invés de simplesmente aludirmos ao processo do debate formal que se faz no Senado Federal para sabatina e aprovação do nome enviado pelo presidente da República, apontamos valores culturais, dimensões de ordem jurídica e social que se radicalizam nessa ocasião oportuna de exacerbação, como denunciar as desigualdades de acesso e controle sobre os mecanismos de poder.
A elaboração de supostos normativos que modifiquem o atual modelo tem muito mais chances de ocorrer se criarmos tensões que possam acumular e constituir terreno fértil para semear um projeto de futuro.
Em outro ângulo, importa pontuar que não se trata de uma anticandidatura identitária, como infelizmente já foi apontado por alguns colegas do campo jurídico progressista, em críticas vazias. A candidatura de Soraia é em defesa do próprio Estado Democrático de Direito e da ordem jurídica, que está em risco na atual conjuntura política brasileira, e diante da qual a ocupação de uma cadeira no Supremo Tribunal Federal ganha substancial relevância.
Não significa, por óbvio, que a candidatura de uma mulher negra não tenha importância em si mesma. A teia de significados que aflora no momento de apontar quem deve ocupar a cadeira vazia explicita significados culturais que não se resumem somente ao cerne da política, tocando também questões de identidade, que suscitam argumentação sobre inclusão/exclusão, que acompanham a prática de entidades preocupadas em construir uma noção eficaz e plural de representação.
Àqueles que apontam uma jurista negra, professora, escritora de livros doutrinários, tentando “desqualificá-la”, como defensora unicamente de uma pauta identitária, pode-se perguntar por que jamais criticaram os homens brancos ocupantes da larga maioria das cadeiras dentro das instituições do Poder Judiciário como defensores de “suas pautas”?
Provavelmente a crítica diz mais sobre os autores dela do que sobre a quem se dirige.
Por último, os valores constitutivos da identidade política da anticandidatura de Soraia Mendes, lançada por um coletivo de entidades do mundo jurídico e com ampla adesão dos movimentos sociais, se fazem não apenas no contraponto às atribuições negativas de André Mendonça, mas também como forma de apontar que é necessário estabelecer mecanismos de consulta e participação popular nas indicações.
Nesse sentido, a anticandidatura ultrapassa a ética da resistência e fortalece adiante a criação de um modelo que contemple a constituição de espaço de diálogo importante, que seja expressão de esfera representativa de segmentos sociais jurídicos e políticos na decisão de ocupação institucional.
*Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb – GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.