O livro Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política (Autêntica, 2021) disseca os dois primeiros anos da gestão do atual presidente, que permanece sem partido. A seção sobre políticas públicas mostra um Bolsonaro resolvido a desmontar iniciativas nas áreas de educação superior, saúde, meio ambiente e política externa, além da seguridade social posta à prova com a reforma da previdência. Mas não nos enganemos: há esforços de construção de políticas de perfil muito bem definido em áreas como a segurança pública, economia, ou de defesa de um padrão específico de família, de uma ideia de nação de um só povo, raça e religião, como bem mostram os artigos. De políticas públicas tratam ao menos dez dos 35 capítulos do livro. Reunir essa massa de informações setoriais seria já uma contribuição importante, mas a obra faz mais do que promete o título e aporta elementos para a ainda necessária tarefa de entendermos como foi possível chegar até um governo Bolsonaro. É o que fazem alguns dos capítulos sobre bolsonarismo, valores e cultura política, no volume organizado por Leonardo Avritzer, Fábio Kerche e Marjorie Marona.
Camila Rocha e Esther Solano identificam origens da ascensão de Bolsonaro nas classes populares, na esteira do fenômeno de organização de uma “nova direita” que angariou descontentes com o governo de esquerda desde idos de 2006. Entre as bases do apoio das classes baixas, ecoam promessas antissistema em resposta à crise do sistema político; percepções de desigualdade e de um Estado que se mostra ineficaz para os pobres; e uma sensação de crise moral pela via da promessa de recuperação de valores tradicionais. Esses temas retornam na seção sobre cultura política. Débora Resende indica certa capacidade de representação simbólica, da produção de um nós contraposto a eles que, também para ela, passa por apelos morais, pela exploração da antipolítica, e também por ataques à mídia tradicional, em um padrão desenhado em campanha e mantido no governo.
Continuidades entre campanha e gestão aparecem igualmente em textos iniciais, que questionam: seria o bolsonarismo um movimento ou forma de governo? Leonardo Avritzer caracteriza Bolsonaro como líder de um movimento capaz de destruir políticas. Seu esforço de intimidação sobre outros poderes da República passa justamente por garantir que a antipolítica que apregoa “não seja interrompida por decisões legislativas ou judiciais quando buscam impor limites à política de destruição”. Também Claudio Couto trabalha com a ideia de governo-movimento. A junção dos dois termos parece apontar mais para um padrão de movimento de extrema-direita daqueles que assolaram o início do século 20 – ainda que não sejam mera repetição de fenômenos de outros tempos – do que para os movimentos sociais do mundo pós-anos 1960 e do Brasil pós-democratização, tema que certamente merecerá mais aprofundamento no futuro.
A seção sobre como Bolsonaro altera a relação entre poderes inova ao tratar de aspectos como a organização do gabinete presidencial (errático e voluntarista, nos termos de Magna Inácio) e os impactos de Bolsonaro e da Covid-19 sobre o federalismo, incluindo um olhar para os municípios e a política local. Isso ao lado de artigos sobre relações com partidos, Congresso e Supremo que aprofundam temas mais difundidos.
O conjunto seguinte de textos trata dos deslocamentos no interior da burocracia e mostra um padrão de perda de transparência. No sistema de accountability, de intrincada composição, Luciano Da Ros e Taylor encontram aumento da opacidade e redução da capacidade institucional dos órgãos de controle. Anaís Passos mostra, com preocupação sobre os resultados, o caminho da reativação da imagem dos militares brasileiros como reserva moral da nação.
A seção sobre valores e cultura democrática, além de analisar dados de opinião pública, mostra algumas das ideias que orientam a intrincada articulação entre desmonte e reconstrução de que falávamos no início do texto. O artigo sobre religião no governo Bolsonaro, de Ronaldo de Almeida, aponta tensão entre apelos à “liberdade religiosa e combate à cristofobia” em um governo no qual religiões de matriz africana estão excluídas, bem como as indígenas, e os motivos para isso são tanto ideológicos quando econômicos, algo que o texto deixa evidente. Um questionamento do uso que vem se fazendo da ideia de liberdade permeia também o texto de Ricardo Fabrino, que analisa como oito valores democráticos – liberdade ao lado de igualdade, participação, debate público, entre outros – são colocados à prova no atual governo. Apesar do uso frequente, o sentido de liberdade no governo é restrito aos que advogam posições da gestão. Assim, “esvazia-se a noção de liberdade e reduz-se a democracia ao domínio de uma maioria eleitoral, minando os valores de que depende a sobrevivência democrática”.
Sobram, pois, motivos para ler o livro, que traz temas inovadores e aprofunda outros mais debatidos. Em meio a tantas virtudes, um olhar mais acurado para questões indígenas, fundiárias e agrícolas seria interessante, assim como a políticas relativas à diversidade sexual. Isso, certamente, contando que autoras e autores sigam adiante no acertado esforço de acompanhar como se desdobra um governo que segue empenhado em degradar a democracia.
Priscila Delgado de Carvalho é pesquisadora do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (INCT). Doutora em Ciência Política pela UFMG