Ex-ministro da Educação, o filósofo Renato Janine Ribeiro foi eleito presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com 1.205 dos 1.914 votos, foi escolhido para liderar a entidade, em uma eleição que teve o maior índice de participação (60%) de cientistas em dez anos. O filósofo, formado na Universidade de São Paulo, assume o cargo sexta-feira, dia 23, com desafios de enfrentar o clima de negacionismo da ciência, o corte de verbas públicas para pesquisa e fazer a defesa da própria democracia brasileira.
Ele critica uma “política contra a inteligência” da gestão Jair Bolsonaro e destaca a importância social da entidade científica, que lançou um observatório para monitorar ataques contra a liberdade de expressão e do conhecimento. Sobre as investigações da CPI da Covid, ele espera punição aos culpados pelos erros na condução da pandemia. “Não sou juiz, não tenho condições de avaliar a documentação que estão levantando, mas, aparentemente, não houve apenas negacionismo. Terá havido também negociatas. Se isso aconteceu, tem de haver a responsabilização”, diz Janine Ribeiro. “Uma vez na vida, o Brasil tem que promover a responsabilização de quem fez coisa errada.”
Leia a entrevista abaixo:
O momento para a ciência brasileira é difícil. Há a pandemia, com mais de 540 mil mortos, uma onda de negacionismo científico e cortes de verbas para a pesquisa. Neste contexto, qual é a sua prioridade para essa gestão na SBPC?
Temos uma prioridade no tempo e uma, vamos dizer, na qualidade. A prioridade no tempo é a gente lutar para evitar que se destrua por completo o parque de inteligência que foi construído no Brasil. Estamos numa fase na qual as universidades estão em risco. Os equipamentos de pesquisa estão em risco, como o supercomputador Tupã, do Inpe, que está sob risco de ser paralisado por não pagar a conta de luz! Acredite se quiser! Um equipamento que prevê meteorologia, faz uma quantidade de cálculos inimaginável, fantástico, fundamental para o agronegócio e o turismo. Permite prever a meteorologia, coisa da qual essas duas áreas dependem muito. A lavoura e a pecuária e também o turismo dependem disso. E a sociedade em geral também ganha com ele. Então, veja, esse equipamento está com risco de parar de funcionar porque as verbas do Inpe foram cortadas tanto, tanto, que ele ficou praticamente sem condições de se manter. Temos que defender isso tudo que foi construído pela sociedade, pelos cientistas, pela comunidade acadêmica, pela cultura, pelos ambientalistas, pela saúde. Isso tudo está sob ameaça. Tivemos até um ministro da Saúde que queria privatizar o SUS. Temos que defender isso tudo, que é um patrimônio da sociedade.
É a gente deixar claro para qualquer governo, todos os atores políticos e sociais, que estamos no mundo da inteligência. Na chamada sociedade do conhecimento. Não teremos desenvolvimento econômico sem ciência e tecnologia. Para o Brasil recuperar a economia, você pode discutir juros, flexibilização, estatização, mas a questão principal é o que vai ter de ciência nos nossos produtos? Quanta ciência vai estar embutida naquilo que o Brasil vai exportar? Seja matéria-prima, manufaturados, serviços? Então, essa é uma convicção que tem de impactar os atores sociais. Todos. Os empresários têm de entender isso, assim como a sociedade e governantes. Olha, as pessoas desfrutam da ciência, mas sem saber dos princípios da ciência.
Por exemplo, você pega os terraplanistas. Tem gente que acha que a Terra não é redonda. É pouca gente, mas tem. Mas, note, essa gente usa o waze, usa GPS. Coisas que só são possíveis porque a Terra é redonda. Se fosse plana, você não teria satélites. Então, uma coisa muito importante é as pessoas perceberem quais são os efeitos da ciência na vida delas. Não haverá ganhos tecnológicos ou de conforto sem ciência. Veja os remédios. Tem farmácia em todo canto. Em Brasília tem até a rua das farmácias. O remédio é fruto da pesquisa científica. A sociedade hoje é, em boa parte, fruto do avanço da inteligência.
Vamos pegar um caso diferente, da igualdade homens-mulheres. Os homens, durante milênios, mandaram nelas porque eram mais fortes, batiam nas mulheres. E a sociedade precisava muito da força bruta. Era a barbárie. Hoje não é mais assim. Há as máquinas. Num país como o Irã, por exemplo, você tem mais mulheres na universidade do que homens. Por mais machista que seja o regime dos aiatolás, vai chegar uma hora na qual as mulheres vão ter protagonismo. Porque elas é que estão tendo o conhecimento qualificado para, no futuro, dirigir o país. Não estou dizendo que elas sejam mais inteligentes do que os homens, não é isso, mas a superioridade dos homens era da força bruta. Barbárie. Coisa atrasada. Portanto, essa questão da igualdade de gênero também tem a ver com o nosso mundo. Essa importância do conhecimento tem de ficar claro. E isso está em todas as áreas da SBPC. Lidamos com ciência, educação, cultura. Nossa revista se chama Ciência e Cultura. A gente lida também com saúde, meio ambiente, tecnologia e inclusão social. São sete áreas de um círculo virtuoso. Com elas pode-se ter avanço econômico, social e de civilização.
A SBPC lançou o “Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade”. O que é essa iniciativa? Tem a ver com esse avanço de líderes de extrema direita, como na Hungria, por exemplo, onde se vigia as pessoas usando tecnologia. E como está o Brasil nisso?
Existe todo uma política contra a inteligência, que é muito forte no atual governo do Brasil. Esse governo corta verbas, persegue pessoas com a Lei de Segurança Nacional, vai contra professores que dizem coisas que eles não gostam. É um governo que não quer mais que a escola acolha as diferenças de orientação sexual. Então, temos que defender as liberdades e também o conhecimento, que está sendo mal visto por esse governo. Veja, o caso da Hungria. É interessante. Você tem avanços científicos que são usados para o mal. Um exemplo disso é o ultrassom. É um grande avanço científico para o tratamento de saúde. Mas, na Ásia, em sociedades machistas, eles usam o ultrassom para detectar se o bebê é do sexo feminino para abortá-lo. Veja, o ultrassom é usado para abortar as meninas. O resultado é que, no longo prazo, você passa a ter mais homens do que mulheres. É muito louco. Um machismo que depois vai provocar a falta de mulheres para esses homens. Não sei como essa sociedade vai se organizar depois.
Veja, a ciência tem a inteligência muito do lado ético, mas há invenções tecnológicas usadas para o mal, como esse caso, como na espionagem. Eu faço uma separação no Século 20 entre o período que teve a bomba atômica como grande conquista científica. E matou muita gente. E depois, temos todo um período no qual a ciência avança muito graças ao Pentágono, nos Estados Unidos, graças à defesa por causa da União Soviética. Essas duas potências investiram muito em pesquisa para fins militares. E, chegando no final do século, você passa a ver uma ênfase bem maior em meio ambiente. Mudou. O primordial deixa de ser a guerra e passa a ser a paz, o equilíbrio ecológico. Um mundo melhor. Estamos nessa vertente, eu ia dizer nessa “vibe” (risos). Uma vertente muito mais de compromisso da ciência com a ética. O Observatório tem essa preocupação, de garantir valores de igualdade entre homens/mulheres, branco/negro, igualdades de oportunidades.
Entidades como a OAB, de Raimundo Faoro, tiveram mobilizações fundamentais na redemocratização brasileira, anos 70/80. Hoje, o País vive novamente ambiente de constantes ameaças à democracia e às eleições. A comunidade científica pode ter um caráter semelhante àquele da OAB na redemocratização?
Eu acredito que sim. Nós estamos associados à OAB, CNBB, Academia Brasileira de Ciências, Associação Brasileira de Imprensa e Comissão Arns. Essas organizações atuam com frequência em defesa das liberdades e da democracia. Eu acredito nisso. A SBPC tem de ter um papel de destaque até para deixar claro para a sociedade e futuros governos que não há avanço sem democracia e sem os valores do conhecimento. Isso é decisivo. A OAB teve papel notável, mas a SBPC também teve. As últimas reuniões da SBPC na ditadura foram muito importantes. Eu lembro que o professor Fernando Henrique Cardoso participou de vários desses encontros, assim como outros líderes da Nova República também estiveram presentes. Muito do que a Nova República fez de positivo foi discutido e gestado na SBPC. Depois, também participou do processo de impeachment do presidente Collor, em 1992.
Há um clima de forte debate político no Congresso, na CPI da Covid, sobre a investigação da compra de vacinas e corrupção. O que o sr. espera desse trabalho da CPI?
Eu espero que a CPI apure os autores dos malfeitos e promova a responsabilização dos culpados. Não sou juiz, não tenho condições de avaliar a documentação que estão levantando, mas, aparentemente, não houve apenas negacionismo. Terá havido também negociatas. Se isso aconteceu, tem de haver a responsabilização. No Brasil, morreram cinco vezes mais pessoas do que na média do mundo. Isso é assustador. Não é coisa para simplesmente esquecer. Uma vez na vida, o Brasil tem que promover a responsabilização de quem fez coisa errada.
O Brasil ainda vive a pandemia enquanto outros países já estão saindo da crise, há vários exemplos. Quanto tempo falta para voltarmos à normalidade?
Bom, eu não sou da área, mas o Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, que foi perseguido pelo atual governo, publicou artigo na Folha dizendo que considera que no final do ano estaremos chegando à normalidade, supondo-se que a vacinação continue. O cálculo seria o seguinte: se conseguirmos dar a segunda dose da vacina até o final de novembro, em dezembro teríamos o país mais normalizado. Ele é especialista. Acho que depende de você ter a vacinação, chegar a 80, 85% da população vacinada, mas também da proteção da vacinação contra a variante Delta. E quanto mais tempo demora para vacinar, mais variantes vão surgindo, o que é muito perigoso. Não é uma questão de sorte, é questão de vacina. Se tivermos a vacinação, podemos normalizar no começo do ano que vem. É possível que precisemos de passe-sanitário, como ocorre na França.
Difícil dizer. O governo ataca especialmente as ciências humanas. Ele acredita que as ciências humanas não repercutem no PIB e também porque acredita que seria um foco de esquerdismo. O que não é verdade. Há muitas divergências em todas as ciências. E eu pergunto como um governo governa se ele não conhece a ciência da sociedade, a sociologia? Se não leva em conta o urbanismo, a saúde pública, que é um misto entre saúde e ciências sociais. Essas áreas foram muito prejudicadas, o meio ambiente também.
Na saúde, o governo não apostou na ciência das vacinas, cortou verbas. O Brasil teria condições de produzir vacinas. Se Cuba fez, porque o Brasil, que é a décima primeira maior produção científica mundial, não fez? E, depois, as ciências humanas. Mas todas foram prejudicadas. Quando a Universidade Federal do Rio de Janeiro está ameaçada de fechar atividades no segundo semestre, isso afeta tudo, inclusive a COPPE (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da UFRJ), que é fortíssima em engenharia. Tudo está sendo prejudicado.
As agências internacionais de fomento à pesquisa podem ajudar na recuperação da pesquisa no Brasil, por exemplo? É uma saída para o pesquisador?
É difícil, porque quem tem de financiar a pesquisa brasileiras é o próprio Brasil. Pode-se recorrer a fontes internacionais, mas é melhor vir pela via oficial. Temos vários acordos, Capes, CNPq, mas em geral, eles presumem que o Brasil faça a sua parte. Ou seja, que a agência brasileira de fomento coloque dinheiro e que o governo brasileiro patrocine, apoie. Veja a palhaçada que foi aquela exposição que o ex-ministro do Meio Ambiente fez para norte-americanos colocando “tv de cachorro”, como dizem, e falando que o Brasil queria dólares para cuidar da Amazônia. Era quase uma ameaça, quer dizer, se vocês não pagarem, nós queimamos a Amazônia. Parece a criança que diz que vai prender a respiração, ameaçando o pai. Quem é prejudicado com essa política de cortes de investimentos em pesquisas somos nós mesmos. É claro que esses fundos que não são somente de pesquisa, como o da Noruega, que são fundos de preservação, não vão investir se o Brasil tiver um governo que sabote o meio ambiente.
Parece que sim. Há uma pressão muito grande dos EUA contra a China. Mas o Brasil não deve ser campo de batalha de interesses que não são os dele. O Brasil tem de escolher o que for melhor para o Brasil. Não pode aceitar chantagem, seja de que lado for.
Veja, desde o governo Itamar, em 92, até pelo menos ofinal do governo Dilma, em 2016, tivemos divergências sobre políticas educacionais entre PT e PSDB. Mas foi sendo construída uma convergência sobre a educação básica pública. Havia divergência grande com relação ao ensino superior, O PT queria que fosse mais público; o PSDB enfatizou o setor privado. Mas a educação básica pública foi apoiada pelos dois lados. Ou seja, houve convergência. E, nesse ponto, o atual governo não dá importância. Você não vê hoje atenção como aquela. Eles quase deixaram acabar o Fundeb. Quem preservou o Fundeb foi o Congresso. E sem o Fundeb haveria um colapso do ensino fundamental. O Congresso salvou, depois da atuação das entidades pró-educação. O que a gente vê é que esse governo não tem um projeto. O único projeto de lei que eles priorizaram é assunto irrelevante, que é a educação domiciliar, que tem 7 mil famílias interessadas. Quando você tem 47 milhões de alunos matriculados na educação básica. É um governo que não tem a educação como prioridade. O que, aliás, converge com o projeto deles, de redução do papel da inteligência.
Olha, o Brasil tem uma riqueza em biodiversidade muito grande. Então quando você vê aquela foto do ex-ministro Ricardo Salles, todo feliz na frente de toras largas de árvores centenárias, é uma tristeza. Porque você manda para fazer móveis uma árvore que poderia nos trazer informações, por exemplo, sobre a história do clima. Por aquela árvore você tem condição, como fazem no hemisfério norte, onde é comum olharem os anéis das árvores, e, por ali, saber como estava o clima em, por exemplo, 1350. Não é pura curiosidade, serve para ver os ciclos climáticos. Então, quando você vê cortada, inclusive contra a lei, uma árvore dessas, você vê o desperdício de conhecimento. Veja, eu tenho um amigo que planta mogno. Ele só pode ser cortado depois de 40 anos. É um projeto que rende muito, mas é de longo prazo, coisa para sua família, seus netos. Isso, sim, é muito positivo. Essa é a consciência que tem de ser difundida. É preciso pensar no futuro.
Fonte: Estadão