Há 31 anos, em 13 de julho de 1990, através da lei 8.069, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O estatuto foi criado como uma medida de garantia constitucional para menores de 18 anos que não eram vistos como sujeitos de direitos no país. Anteriormente, à lei 8.069, o Brasil tratava crianças e adolescentes que tinham dificuldades de se adaptar a um meio social e familiar, com a mesma punição imposta a alguém que cometesse crimes, como furto, roubo ou assassinato. Com isso, crianças e adolescentes eram punidos dentro do código de menores, que tratava dos menores infratores da época, em sua grande, maioria pobres e negros marginalizados pela sociedade. A preocupação era apenas de manter a ordem social, aplicando punições a quem se encontrava em situações “irregulares”, sendo então afastados da sociedade.
Instigados pela forma como eram tratadas a infância e juventude, os movimentos sociais pressionaram a justiça e o governo para a inclusão de garantias à criança e ao adolescente na Constituição Federal de 1988, nascendo então o artigo 227 da Constituição Federal. Assim, logo depois, em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, rompendo com a Doutrina da Situação Irregular e passando a enxergar menores de 18 anos sob uma nova perspectiva. Entretanto, a vigência do ECA não trouxe garantias de que todas as suas medidas são ou serão cumpridas. Mudanças ocorreram ao longo dos anos, porém, ainda hoje, parte do estatuto não é aplicada. Crianças e adolescentes em situação de rua e abandono ainda são marginalizados pela sociedade.
Direito à Educação
O artigo 53 do ECA assegura que “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”. Porém não é o que se observa nas ações governamentais, especialmente em âmbito federal, que tudo tem feito para dificultar o acesso de crianças e adolescentes ao conhecimento e ao convívio social proporcionado pelo ambiente escolar.
Basta lembrar que Bolsonaro, depois de vetar integralmente a lei que obriga o governo a fornecer acesso à internet a estudantes das escolas públicas, e ver seu veto ser derrubado pelo Congresso Nacional, ainda recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a aplicação da lei aprovada (14.172/2021). E essa foi apenas uma das iniciativas do governo federal de impor obstáculos à inclusão e à democratização do acesso à escola, ao ensino e ao conhecimento.
O ECA também prevê, em seu artigo 56, que é papel dos dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicar ao Conselho Tutelar os casos de maus-tratos envolvendo seus alunos, por exemplo. Isso significa que também cabe à escola a tarefa de observar e denunciar se o estudante, em casa, é vítima de violência de qualquer natureza.
Mas a execução desse artigo fica prejudicada por outro projeto apoiado pelo governo Bolsonaro: o da educação domiciliar. Quando se admite que seja roubado da criança ou do adolescente o direito ao convívio social, ao confronto de ideias, e, sobretudo, à vivência escolar, está-se chocando frontalmente contra os princípios do ECA.
Desafios
A importância do ECA está em reconhecer os direitos da infância e juventude, e priorizar o seu cumprimento, porém essas realizações ainda não ocorreram na proporção em que deveriam, expondo um grande desafio no cumprimento da lei. A falta de investimento público nas organizações que cuidam de garantir os direitos destes menores é uma das necessidades do país. Porém, há também questões essenciais que desafiam a aplicação do estatuto, como torná-lo ainda mais conhecido na sociedade e não apenas ser um texto decorado por quem trabalha na área, além de combater propostas que visam a retroceder na defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
A desigualdade que permeia o país ainda é um obstáculo contra o cumprimento destes direitos. Um estudo feito em 2020 pela ONG Visão Mundial aponta a existência de 70 mil crianças em situação de rua em todo o Brasil. Os dados revelam a triste realidade de milhares de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos, que são invisíveis aos olhos da sociedade. A pesquisa ainda aponta que 51% destes menores estão em situação de extrema violação de direitos, mostrando a necessidade de investimentos em políticas públicas. É dever do Estado garantir essas medidas, além de assegurar a proteção, o cuidado e a educação destas crianças conforme determina o estatuto, destinando recursos em prol do desenvolvimento da infância e juventude.
Em 2018 o presidente Jair Bolsonaro, então deputado, em sua campanha, debochou das defesas dos direitos apresentadas pelo estatuto, quem segundo ele, deveria ser rasgado e jogado na latrina. “Este ECA é o estímulo à vagabundagem, malandragem infantil no nosso país […] você não pode triscar numa criança que o ECA proíbe. Ele presta um desserviço à sociedade”. Suas declarações em ataque ao estatuto são convergentes com o antigo código de menores, que defendia abusos psíquicos, físicos e morais.
Porém, justificar as medidas que eram tomadas embasadas na Doutrina da Situação Irregular é um retrocesso social e uma afronta às centenas de movimentos sociais que se levantaram anteriormente para garantir que criança e adolescente fossem alcançados pela lei como cidadãos de direito. Contradizer o ECA é ir também contra a democracia, pois nenhuma lei deve ser desprezada, pelo contrário, deve ser garantido o seu cumprimento. O governo atual quer tirar a responsabilidade de investimentos sociais, acabando com as medidas constitucionais dos mais vulneráveis, e deixando os que realmente necessitam de cuidados à míngua.
De acordo com o conselheiro tutelar Gustavo Henrique, representante do DF no Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares, falar sobre a importância do ECA nas constituições de direito do país requer uma reflexão sobre o passado. “O estatuto é um divisor de águas na forma de ver e entender os direitos de crianças e adolescentes. Agora estamos na Doutrina da Proteção Integral de todas as crianças e adolescentes, sem exceção de situação irregular ou classe social. Eles passam a ser vistos como sujeitos de direitos, e os cuidados para o bom desenvolvimento passam a ser de todos: família, sociedade e Estado, com prioridade absoluta.”
Em entrevista ao Sinpro, a conselheira tutelar Ana Maria Soares respondeu uma série de perguntas a respeito do ECA e sua importância no desenvolvimento social de crianças e adolescentes do país.
1 – Qual a importância do ECA no meio social?
São as leis que regem nossas crianças e adolescentes. A importância do ECA é porque ele se torna um marco legal para nossas crianças e adolescentes. Porque antes do ECA, como é que funcionavam as leis? A criança e adolescente, naquela época, não tinham direitos iguais, se a criança cometesse um crime, se ela vivia numa situação de vulnerabilidade social ou qualquer situação parecida, ela estava em situação irregular antes do ECA. Hoje se uma criança comete um ato infracional ou vulnerabilidade social somos nós, adultos, que estamos em situação irregular, não mais a criança.
2- Quais são os principais pontos defendidos pelo estatuto?
É dever de todos garantir os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Direito à vida, à saúde, ao esporte, ao lazer, à educação. A criança deve ter todos esses direitos que são fundamentais à vida.
Estes direitos, na verdade, estão apenas lá no papel, mas sabemos que estes direitos nem sempre são garantidos. Quantas crianças estão na fila de espera pra fazer uma consulta, pra fazer um exame, para fazer uma cirurgia, quantas crianças não têm alimentação todos os dias, principalmente agora em plena pandemia, quantas crianças não estão tendo aula online porque não têm um tablet, não têm internet, não têm computador, não têm minimamente um celular para acompanhar estas aulas, e à vezes até o material impresso não chega em casa. Infelizmente, em meio à pandemia, piorou muito, porque todos tiveram que reinventar e esgotar todos os recursos escolares para que façam com que estas crianças tenham acesso às aulas, e mesmo tentando de todas as formas, nem todas as crianças conseguem ter acesso à educação, que é um direito fundamental.
3- Quais os desafios em cumprir e garantir estes direitos?
O país é marcado pela desigualdade social, marcado pela violência, pelos preconceitos de muitas pessoas que ainda acham que crianças precisam trabalhar, porque pensam que é melhor trabalhar do que ficar a rua jogado, é melhor trabalhar do que cometer crimes. Mas na verdade não é melhor trabalhar, melhor é estudar , o melhor é uma criança brincar, melhor é ter uma infância feliz, do que ser exposta a riscos de ser abusada sexualmente, o melhor é que ela tenha os seus direitos garantidos, e isso não depende apenas do ECA, apenas isso não vai fazer com que a sociedade mude o pensamento. Além do ECA, precisamos de investimento nas políticas públicas, criação de campanhas governamentais que façam com que a sociedade entenda que o melhor para nossas crianças é uma família que dê esse suporte, e de um Estado que também fortaleça esses direitos, cuidando e protegendo essas crianças e adolescentes.
Fonte: SINPRO-DF