Regras fiscais precisam ser revistas, diz coordenador econômico de plano do PT

Guilherme Mello, da Unicamp, diz que gastar não é pecado e defende taxação de dividendos

Gasto público não é pecado, diz o professor da Unicamp Guilherme Mello, 38, um dos principais formuladores do PT na área econômica. Desde que seja, explica, uma despesa eficiente e que contribua para distribuir renda.

Para isso, defende Mello, é preciso fazer uma completa reavaliação de toda a estrutura fiscal brasileira, que não se limita ao fim do teto de gastos.

“O Brasil terá que discutir seu conjunto de regras fiscais a partir de 2023 [novo mandato]. Isso inclui fazer um balanço crítico de teto, Lei de Responsabilidade Fiscal, regra de ouro e PEC Emergencial. Porque a gente está sobrepondo uma regra a outra, e elas não fazem mais sentido”, afirma.

Um dos coordenadores econômicos do programa de governo de Fernando Haddad em 2018 e do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil lançado pelo PT em 2020, Mello deverá ter papel semelhante na concepção das propostas da provável candidatura presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva no ano que vem.

Em entrevista à Folha, ele diz que o partido segue comprometido com o chamado tripé macroeconômico (metas de inflação e fiscal e câmbio flutuante), que foi uma marca dos governos de Lula, mas se enfraqueceu sob Dilma Rousseff.

Também defende a proposta do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) de taxar dividendos, embora critique a fixação de uma alíquota única.

Filiado ao PT há 16 anos, o economista diz ainda não ver necessidade de novos acenos de Lula ao mercado como fez em 2002, quando divulgou a Carta ao Povo Brasileiro.

“O compromisso maior que o Lula pode oferecer é sua história, o que ele fez durante oito anos”, afirma.

Um novo governo do PT seria como o de Lula, que teve como marca a responsabilidade fiscal, ou o de Dilma, que fez o contrário e terminou em recessão?

Quando a gente coloca dessa forma, fica parecendo que há uma grande continuidade nos governos Lula e uma ruptura no Dilma. Os indicadores fiscais vinham bem até 2013. A dívida continuou caindo, inclusive a líquida, que é o indicador principal de solvência. Houve superávit primário até 2013. A gente tinha o maior estoque de reservas, então do ponto de vista externo, a situação era de tranquilidade.

Se queremos priorizar equilíbrio fiscal, temos que pensar como reativar a economia. Esse foi o grande erro dos governos [Michel] Temer [MDB] e Bolsonaro, a ideia de que primeiro coloca o fiscal no lugar e isso vai causar o crescimento econômico, gerar confiança.

Não houve erro de Dilma ao adotar medidas de interferência na economia, como forçar a redução na energia elétrica e aumentar as desonerações?

Muita gente fala que a “nova matriz econômica” é a culpada de todos os males. Tudo que um economista liberal não gosta coloca lá. A tal da nova matriz dizia respeito a uma nova combinação de política macroeconômica. Não era abandonar o tripé [macroeconômico], continuou tendo metas de inflação e primária. Era uma espécie de flexibilização. Em termos de meta de inflação se falava em prolongar um pouco mais o período de tolerância. Olhando retrospectivamente, eu não faria exatamente essa política. Até a própria Dilma já falou que talvez tenha exagerado nas desonerações.

Qual o comprometimento atual do PT com o tripé macroeconômico?

Está na nossa própria história, não com o tripé em si, mas com os objetivos de política econômica. O PT sempre teve clareza da importância de manter a inflação controlada. Até o final do governo Dilma 1 [2014], a inflação ficou dentro da meta. E na questão fiscal, o Lula pegou o Brasil com uma relação dívida líquida/PIB de 60% e em 2015 estava em 36%.

A defesa do fim do teto não coloca em dúvida o compromisso com a questão fiscal?

O teto é uma regra que não existe paralelo no mundo. Vai contra as boas práticas recomendadas inclusive pelas instituições internacionais. Foi mal desenhado, tanto que o governo teve que aprovar a PEC Emergencial para corrigir erros. O Brasil terá que discutir seu conjunto de regras fiscais a partir de 2023 [novo mandato]. Isso inclui fazer um balanço crítico de teto, Lei de Responsabilidade Fiscal, regra de ouro e PEC Emergencial. Porque a gente está sobrepondo uma regra a outra, e elas não fazem mais sentido.

O grande objetivo do teto, do jeito que foi criado, é reduzir violentamente o tamanho do Estado em 20 anos. Pegar uma regra ruim que todo ano é estourada, olhar o conjunto e fazer uma nova, isso atenta contra a responsabilidade fiscal?

Eu diria o contrário: não fazer é que atenta. Você mantém um arcabouço caótico de regras fiscais em que nenhuma é seguida na prática, e no qual governos vão fazendo arbitrariamente remendos aqui e ali.

O teto não é importante para evitar o descontrole de gastos?

Muita gente alega que no governo Dilma teve descontrole dos gastos. Mas o ritmo de crescimento de gastos foi igual ou inferior ao do governo FHC. Muito se fala de gasto público como se fosse pecado, que tem que cortar. É o que a gente tem feito na ciência e tecnologia, educação, todas. E sucateando todas. Gasto não é pecado. Ele pode ser gasto eficiente, que distribui renda, ou que concentra renda.

Qual sua opinião sobre a proposta do governo de taxar dividendos em 20%?

O princípio é correto. A maior fonte de renda dos ricos é distribuição de lucros e dividendos. Tem uma questão distributiva fundamental, de justiça social. Eu não gosto da ideia de taxar uniformemente, com uma alíquota única. Por que você taxa de maneira progressiva os ganhos sobre o trabalho e não os da renda do capital?

Com relação à reforma administrativa, a estabilidade no serviço público é intocável para o PT?

Fim da estabilidade prejudica a atuação do servidor público, porque fica sujeito às pressões do governo de plantão. Pega o caso das vacinas; o servidor que denunciou tem a segurança de que não vai perder o emprego. Imagine como estariam as universidades públicas se não houvesse a estabilidade. Iam demitir todos os professores e contratar um monte de militar para dar aula.

Mas o PT defende alguma reforma no serviço público? É totalmente razoável pensar numa normatização mais adequada do teto remuneratório, para que todos os servidores de todos os Poderes se enquadrem naqueles limites, evitando penduricalhos, exceções.

Muitas atividades do setor público vão acabar sendo afetadas pelas mudanças tecnológicas, precisa repensar o conjunto das carreiras, provavelmente reduzir o número. Em algumas, repensar o plano de carreira, o salário de entrada, que às vezes é muito próximo do teto, o que desincentiva o avanço.

Desde a saída do PT do governo, houve grande flexibilização da legislação trabalhista. É desejo do partido reverter essas mudanças?

A reforma trabalhista tem que ser pensada no contexto das mudanças no mundo do trabalho. A uberização é um fenômeno, a precarização é evidente. Como a gente vai garantir alguma proteção para o pessoal que trabalha em aplicativos? Isso não quer dizer enquadrar na velha CLT, mas também não é deixar como está hoje. Aqui não houve apenas uma reforma trabalhista, mas também desmonte dos sindicatos. Você não pode aceitar que daqui para a frente o vínculo determinante vá ser o precário formalizado. Não dá para falar em revogar o que foi feito de um dia para o outro, mas também não se pode aceitar que agora a realidade é essa e não tem nada a fazer.

O PT sempre teve como uma de suas bases o trabalhador assalariado dos setores privado e público. Como lidar com essa nova classe de uberizados e informais?

Se tem alguém que em condições de conversar com esse pessoal é o PT. No fundo, essas pessoas são trabalhadores, não empreendedores individuais. Elas não têm capital, às vezes não têm nem a bicicleta para o delivery. Qual foi a grande questão dos governos Lula? Trazer para a economia uma série de pessoas que estavam excluídas ou precarizadas. E ele conseguiu formalizar, aumentar a renda, salário, emprego.

Em 2002, Lula fez diversos acenos ao mercado. É necessário renová-los no ano que vem?

O compromisso maior que o Lula pode oferecer é sua história, o que ele fez durante oito anos. Manteve a inflação sob controle, gerou crescimento com emprego e distribuição de renda, reduziu a dívida pública. O que ele vai comunicar agora é como o Brasil vai sair dessa depressão em que entrou, qual a forma de tirar o país do buraco, do atoleiro em que se meteu nos últimos anos.

O PT tem parte da responsabilidade sobre esse atoleiro, não?

É óbvio que em 13 anos de governo houve erros. Mas tem de colocar tudo num contexto internacional e político. Se você pegar o conjunto da obra, até 2014 houve inclusão social, crescimento econômico, geração de emprego. Já 2015 foi um ano muito duro, mas era possível reverter. O problema não é tropeçar e cair. O problema é não conseguir levantar de novo. O Brasil tropeçou, caiu e não consegue mais se levantar.

Há chance de o cenário econômico melhorar um pouco daqui até a eleição?

Mesmo que se concretize crescimento previsto de 5%, tem que pensar o que isso significa. Parece bonito, mas tem que lembrar que caiu 4%. E com um mercado de trabalho completamente deteriorado, 15 milhões de pessoas desempregadas, 30% da população subutilizada, o endividamento das famílias explodindo, a inflação que vai bater 8,5%. É possível que o governo faça uma festinha, mas a vida do povo continua muito mal.

RAIO-X
Nome: Guilherme Mello
Idade: 38
Formação: graduado em economia pela PUC-SP e ciências sociais pela USP; tem mestrado em economia política na PUC e doutorado em ciências econômicas na Unicamp
Atuação profissional: coordenou a parte econômica do programa de Fernando Haddad a presidente em 2018 e o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil do PT em 2020; é professor do Instituto de Economia da Unicamp, onde coordena o programa de pós-graduação em desenvolvimento econômico

Entrevista publicada originalmente na Folha de SP de 12/07/2021

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