O presidente Jair Bolsonaro vem comprando o apoio e a fidelidade dos senadores que atuam em sua defesa na CPI da Covid. Um levantamento exclusivo feito por Crusoé revela que nada menos que 660 milhões de reais em recursos do caixa federal já foram liberados para obras e projetos indicados por sete parlamentares que ocupam vagas na comissão, como titulares ou suplentes. Um sexto do total tem origem em emendas individuais e de bancada e foi pago a partir da última semana de abril, quando a CPI iniciou oficialmente os trabalhos. O restante da dinheirama vem saindo do chamado orçamento paralelo, aquele que o governo tem usado para comprar apoio político no Congresso.
Somando o que foi distribuído já durante os trabalhos da CPI com os recursos com os quais esses mesmos parlamentares já haviam sido aquinhoados entre dezembro e janeiro, quando o Planalto abriu o cofre para garantir a eleição de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco para as presidências da Câmara e do Senado, precisamente 550 milhões de reais do orçamento paralelo foram destinados aos governistas que integram a chamada tropa de choque governista. Com um detalhe: para esses senadores que defendem Bolsonaro, os pagamentos vêm sendo acelerados. O dinheiro tem saído, em maior medida, dos ministérios do Turismo, da Agricultura, da Infraestrutura e do Desenvolvimento Regional.
A lógica é a mesma que imperou na própria concepção do orçamento paralelo. Quando o Planalto se viu na necessidade de construir uma base de apoio no Congresso, para facilitar a aprovação de seus projetos e blindar o próprio presidente da República das ameaças de impeachment, ele abriu o cofre. Na CPI, à medida que aumenta a pressão contra o governo, acossado pelas fartas evidências de que não agiu para conter a pandemia no país, mais alta vai ficando a fatura.
Para não despertar tanta atenção, uma parte das liberações tem ocorrido por meio das emendas de bancada – aquelas cuja destinação é definida pelo conjunto de parlamentares de um mesmo estado. Como elas não são atreladas a um senador específico, fica mais difícil ligá-las aos governistas da CPI — difícil, mas não impossível. Ao se debruçar sobre os pagamentos, Crusoé descobriu que o governo, estrategicamente, tem selecionado para liberação as emendas de bancada que contemplam demandas dos senadores aliados na comissão parlamentar de inquérito e que surgiram por indicação deles próprios para atender seus redutos eleitorais.
Dois exemplos envolvem os municípios de Ji-Paraná, em Rondônia, e Petrolina, em Pernambuco. O primeiro é o berço político do senador Marcos Rogério, o cabeça da tropa de choque governista na CPI. O segundo é um conhecido feudo da família de Fernando Bezerra Coelho, líder do governo no Senado e também integrante da comissão. As emendas para os dois municípios não estavam nem sequer entre as prioridades estabelecidas pelas bancadas dos dois estados, mas por determinação do Palácio do Planalto passaram à frente da fila nos meses de maio e junho, quando a CPI já estava em curso.
Fernando Bezerra é um dos líderes de repasses, a julgar pelo valor global de liberações, entre emendas de bancada e recursos do orçamento paralelo. Ao todo, ele aparece como o responsável por indicar o destino de 153,8 milhões de reais. Bem próximo a ele aparece o loquaz Marcos Rogério, aquele que, de todos os aliados, talvez seja o que tem assumido de maneira mais escancarada a defesa de Jair Bolsonaro e do governo na CPI, muitas vezes com argumentos furados e questionáveis. No levantamento feito por Crusoé, o senador de Rondônia foi agraciado com a liberação de 127 milhões de reais em verbas.
Desse valor, 22,9 milhões foram liberados no último dia 2 de junho para a construção de uma passarela sobre uma rodovia federal que corta Ji-Paraná. A manobra do Planalto para beneficiar o aliado fica clara. Ao definir para onde deveriam seguir os recursos das emendas de bancada, os parlamentares federais de Rondônia apresentaram, no orçamento deste ano, um total de 20 propostas. A única que foi atendida até o momento foi justamente a que interessa a Marcos Rogério.
Ji-Paraná,cidade natal do senador, tornou-se um polo de investimentos federais. Com 130 mil habitantes, já foi contemplada com um total de 33 milhões de reais. A cifra supera até a da capital do estado, Porto Velho, que tem uma população quase cinco vezes maior e para onde foram destinados, até o momento, 14 milhões. Enquanto dá a cara à tapa na CPI como advogado do governo, localmente Marcos Rogério se vangloria dos recursos que tem conseguido destinar para a sua região.
Para além de Ji-Paraná, ele também tem conseguido que o governo Bolsonaro destine recursos para municípios comandados por prefeitos aliados dele. A cada liberação de verba, o senador comemora por meio das redes sociais e em um grupo de WhatsApp no qual dispara mensagens sobre os feitos de seu mandato. No último dia 14 de junho, por exemplo, ele bateu bumbo para a liberação de 600 mil reais para o calçamento de ruas no município de Colorado do Oeste. “Xô, poeira”, festejou.
Bem em linha com a estratégia do Planalto, Marcos Rogério tem usado a CPI para atacar adversários de Jair Bolsonaro e repetir as bandeiras assumidas pelo presidente durante a pandemia, como a crítica às medidas de distanciamento social. A defesa ferrenha que o senador faz do governo costuma colocá-lo, com frequência, no meio de confusões barulhentas com outros integrantes da comissão. No último dia 9, por exemplo, ele chamou o senador baiano Otto Alencar de “covarde”. “Covarde é quem apoia o governo”, retrucou Alencar.
Em nota enviada a Crusoé, Marcos Rogério negou que haja relação entre as liberações de verba e sua postura pró-governo na CPI. “Não cabe dizer que há relação com a comissão parlamentar de inquérito”, escreveu. O senador disse desconhecer a emenda de 22,9 milhões de reais para sua cidade, apesar de a equipe técnica do Ministério da Infraestrutura, órgão de origem do recurso, informar que é ele o “padrinho” da liberação.
O caso de Fernando Bezerra, outro titular da CPI, é também ilustrativo. Há duas semanas, o governo passou à frente na lista de emendas de bancada de Pernambuco uma que prevê a destinação de 12,3 milhões de reais para Petrolina, município cujo prefeito é o filho dele, Miguel Coelho. Foi a maior cifra liberada para a bancada do estado até o momento. Antes, o senador já tinha sido contemplado com o pagamento de uma emenda individual de 6,5 milhões. Os dois valores têm como destino uma mesma obra, a duplicação de um trecho de oito quilômetros da BR-428, que corta o município. Assim como acontece com quase todos os recursos destinados pelo senador a Petrolina, a empresa responsável pela execução do trabalho, a Castilho Engenharia e Empreendimentos, aparece enrolada em auditorias da Controladoria-Geral da União – o órgão encontrou irregularidades em um contrato de 136 milhões fechado pela empreiteira com o DNIT. Fernando Bezerra tem conseguido ainda acelerar a liberação de recursos com os quais foi contemplado no orçamento paralelo. A maior parte já caiu no caixa da Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. O escritório da Codevasf na região é comandado por um ex-assessor do senador.
A engenharia da liberação de recursos para os aliados do governo na CPI é especial. Crusoé apurou que os repasses não precisam nem do aval da Secretaria de Governo, como costuma acontecer normalmente. A orientação do próprio Jair Bolsonaro é para que os ministérios encarregados de liberar as verbas priorizem as demandas dos aliados do governo que integram a comissão. Com frequência, os ministros das pastas aparecem ao lado dos senadores em eventos nos quais são anunciados os projetos e as obras a serem executados com as verbas oriundas da parceria estratégica.
Entre os outros senadores da CPI aquinhoados com fatias polpudas do orçamento (confira a lista mais abaixo), estão o piauiense Ciro Nogueira e o gaúcho Luiz Carlos Heinze, ambos do Progressistas, e o catarinense Jorginho Mello, do PL.
Um dos mais destacados chefes do Centrão, Ciro já foi contemplado com 135 milhões de reais. Tratado no Planalto como o filho 05 de Bolsonaro, em razão da simpatia que o presidente nutre por ele, o senador anuncia semanalmente a destinação de verbas para municípios comandados por prefeitos que são seus aliados. Na CPI, ele tem cumprido à risca o papel de defensor do governo – já até leu uma pergunta elaborada pelo ministro Fábio Faria, das Comunicações, para ser feita ao ex-ministro Luiz Henrique Mandetta.
Na última terça-feira, 15, o senador exibiu as duas faces da tarefa à qual vem se dedicando na CPI. Logo após anunciar uma reunião com o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, para liberar recursos para Teresina, a capital de seu estado, ele repetiu o discurso de Bolsonaro de que é preciso investigar a atuação de governadores no combate à pandemia.
Luis Carlos Heinze, que na CPI tem se notabilizado como defensor da cloroquina, já foi beneficiado com 165,9 milhões de reais para distribuir a seus redutos eleitorais. Parte desse valor, 27,9 milhões, foi por meio de emendas de bancada do Rio Grande do Sul que priorizaram suas bases eleitorais. Novo Hamburgo e Santa Maria, onde o senador teve mais de 108 mil votos, foram os municípios que mais receberam dinheiro. Heinze tem feito propaganda das obras nas redes sociais. A maioria delas envolve a revitalização de rodovias.
Jorginho Mello, por sua vez, foi agraciado com liberações que, até agora, somam 35 milhões. Os anúncios para o eleitorado têm sido feitos em paralelo às aparições barulhentas do senador na CPI – nesta quarta, 16, ele se exaltou e bateu boca com Wilson Witzel, governador cassado do Rio de Janeiro e inimigo de Bolsonaro.
É possível ter uma ideia do tratamento especial dispensado pelo governo aos integrantes de sua tropa de choque na CPI da Covid, ao comparar as cifras que eles têm conseguido liberar com os valores destinados a outros aliados de primeira hora do Planalto. Os valores destinados aos integrantes da comissão ficam muito acima da média. A deputada Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal, por exemplo, conseguiu destravar no mesmo período 229 mil reais em emendas, além de 7,8 milhões do orçamento paralelo. Outra conhecida aliada do governo, a deputada Carla Zambelli, do PSL paulista, foi agraciada com pouco mais de 1,5 milhão no total. Entre os senadores governistas que não integram a CPI, a diferença também é vistosa. Telmário Mota, do PROS de Roraima, por exemplo, teve direito a destinar 20 milhões. Procurado por Crusoé, o Palácio do Planalto não se manifestou.
Revista Crusoé