Mais de 400 mil cadastrados que estão na fila de espera do Bolsa Família ficaram sem o auxílio emergencial neste ano, apesar de o governo Jair Bolsonaro (sem partido) dizer que os recursos para o pagamento da assistência emergencial na pandemia estão sobrando.
Essas famílias apresentaram documentação ao Ministério da Cidadania no início do ano, quando a nova rodada do auxílio ainda não tinha sido lançada.
A pasta analisou e confirmou que essas pessoas estão abaixo da linha de pobreza e extrema pobreza, previstas no Bolsa Família.
Após esse aval, as famílias entram na fila de espera. Sem a ampliação do programa social, prometida desde o fim de 2019, quase 1,2 milhão de cadastros aguardavam em março para receber a transferência de renda.
A partir de abril, o governo passou a priorizar o auxílio emergencial, que tinha acabado de ser recriado. O auxílio é um programa temporário e com muito mais recursos que o Bolsa Família.
No entanto, números obtidos pela Folha mostram que, considerando a fila do Bolsa Família, 763 mil estão recebendo o auxílio emergencial.
Isso significa que apesar de já terem superado a burocracia da documentação para o Bolsa Família, 423,3 mil lares não receberam a renda do programa social em abril nem a assistência emergencial para enfrentar a pandemia.
O auxílio emergencial em 2021 foi desenhado para atender 45,6 milhões de famílias. A primeira parcela, em abril, foi paga a 39,1 milhões —menos do que o estimado.
Em relação a custos, o valor desembolsado foi de R$ 8,9 bilhões, enquanto a verba disponível por mês era de R$ 11 bilhões.
Integrantes da equipe econômica citam, portanto, que há uma quantidade excedente de dinheiro e querem usar essa verba para bancar parte da prorrogação do auxílio emergencial, inicialmente previsto para encerrar em julho.
O prolongamento do programa emergencial, porém, não prevê uma ampliação significativa das famílias atendidas.
Procurado, o Ministério da Cidadania não explicou o motivo de a fila do Bolsa Família não ter sido totalmente incluída no pagamento do auxílio emergencial.
A pasta afirmou que tem adotado medidas para alcançar a maior cobertura possível “de famílias em situação de vulnerabilidade, assegurando uma renda mínima para essa parcela da população, ao mesmo tempo em que, com responsabilidade fiscal, respeita-se o limite orçamentário”.
O Ministério da Cidadania afirmou que ainda “trabalha no processamento de cadastros a partir das informações mais recentes disponíveis nas bases de dados governamentais”.
O limite orçamentário é de R$ 44 bilhões para as parcelas do auxílio entre abril e julho. É desse valor que o Ministério da Economia tem apontado um excesso de recursos.
Especialistas dizem que há falhas na gestão da verba destinada ao auxílio emergencial.
“Essas [mais de 400 mil] famílias devem ser atendidas, porque estão empobrecidas e inclusive com dificuldades claras em manter uma alimentação adequada. Deixar essas famílias sem atendimento por nenhum dos dois programas é um ato de desumanidade”, disse a especialista em políticas públicas Letícia Bartholo.
Para entrar no Bolsa Família, é preciso estar no Cadastro Único (que reúne potencial público de programas sociais), ter atualizado os dados há menos de 24 meses, com informações consistentes e sem pendências cadastrais.
Além disso, a renda mensal da família não pode ultrapassar R$ 89 por pessoa (situação de extrema pobreza) ou R$ 178 por membro (situação de pobreza).
Quem passou por esta etapa se torna habilitado ao programa. Mas, por falta de dinheiro, o recebimento da transferência de renda não tem sido mais automático.
Desde meados de 2019, o governo Bolsonaro registra fila de espera para o Bolsa Família. A lista havia sido zerada na gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB).
Na primeira rodada do auxílio emergencial, paga no ano passado, a fatia de famílias que estavam na fila e não receberam assistência do governo foi bem menor. Cerca de 50 mil cadastros aprovados para o Bolsa Família estavam fora do auxílio emergencial em junho de 2020, por exemplo.
Desde que o auxílio voltou a ser pago, em abril de 2021, os beneficiários do Bolsa Família, cuja transferência média é de R$ 191 por mês, recebem do programa mais vantajoso a eles.
Dos 14,6 milhões beneficiários do Bolsa Família, cerca de 10 milhões passaram a ganhar o auxílio emergencial, por ser um valor maior. O auxílio varia de R$ 150 a R$ 375, dependendo da formação da família.
O custo mensal do Bolsa Família caiu de R$ 2,7 bilhões para R$ 1,1 bilhão. Mesmo assim, o programa está praticamente travado desde abril.
Integrantes do Ministério da Cidadania disseram que, como o governo planeja reformular o programa e aumentar o benefício médio no segundo semestre, não houve espaço no Orçamento para que a fila fosse zerada.
A promessa de reestruturação do Bolsa Família é do começo do governo e agora tem um reforço do viés político com Bolsonaro de olho na eleição de 2022.
O auxílio emergencial em 2021 tem como público-alvo quem já está dentro do Bolsa Família e também aquelas pessoas que já receberam o benefício emergencial no ano passado.
Para Bartholo, esse pode ser um dos motivos da falta de assistência às famílias da fila. “É como se tivessem congelado a pobreza no fim do ano passado.”
“Essas pessoas já habilitadas para o Bolsa Família deveriam estar automaticamente elegíveis e recebendo o auxílio emergencial”, afirmou Lauro Gonzalez, coordenador FGV/Cemif (Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas).
Estudo do Cemif já havia apontado que a exclusão digital prejudicou o acesso das famílias mais pobres ao auxílio emergencial durante a pandemia.
Pelos dados, 20% dos entrevistados das classes D e E que tentaram e não conseguiram o auxílio do governo apontam a falta de celular como uma das razões para não conseguir o benefício —quando consideradas todas as classes, esse percentual é de 7%.
O Ministério da Cidadania não respondeu se a exclusão digital pode ter sido um dos fatores para que os mais de 400 mil cadastros na fila de espera do Bolsa Família não tenham recebido o auxílio emergencial em 2021.
Fonte: Folha SP