Por Bernardo Carvalho*
Numa entrevista recente ao jornal Libération, em resposta a uma pergunta sobre o confinamento na pandemia, o lendário diretor de teatro inglês Peter Brook, 95, relembrou os bombardeios de Londres durante a Segunda Guerra. Ao toque dos alarmes antiaéreos, as pessoas corriam para os abrigos subterrâneos, onde ficavam confinadas até soar de novo a sirene que as liberava, às vezes oito horas depois.
“Quando saíamos, éramos engolfados pela destruição, a paisagem mais cotidiana já não existia, e nos dávamos conta de que a sirene tinha nos salvado.”
No Brasil nós nos recusamos a ouvir a sirene. E, mesmo quando a ouvimos, não somos capazes de reconhecer a destruição ao sair do abrigo, simplesmente porque continuamos vivos. E é só o que conta.
A indiferença diz muito sobre nossa relação com o que é público.
Bolsonaro se elegeu com uma ideia da coisa pública baseada na mesquinharia de sua experiência pessoal. Sua eleição evidenciava uma impossibilidade de nação e supunha um suicídio (nosso, é óbvio): cada um por si (e todos contra todos).
Desde o início o presidente deixou claro (até para quem agora alega que não sabia do que ele estava falando) que não pretendia construir nada. A ideia não era erguer mas demolir. E o método, cuja simplicidade cristalina ele já havia aventado bem antes de se candidatar à Presidência, era a guerra civil.
Qual o sonho bolsonarista? Implodir o Estado e com ele o Estado de Direito, o controle de armas, o meio ambiente, as multas, o SUS, a educação pública, a Justiça, a liberdade de imprensa. Auxiliado por um exército de arrivistas ressentidos em busca de um lugar ao sol (ao qual a própria mediocridade até então não lhes havia permitido o acesso), o presidente conclamou uma cruzada contra a inteligência, a competência, as leis e o bem comum.
Seria absolutamente contraditório (e até absurdo) que, durante uma pandemia, ele fosse a favor da ciência, da vacinação ou de medidas que protegessem a população de um vírus mortal.
Foda-se o outro. A arma no lugar do voto. O objetivo é sabotar a própria possibilidade de República.
É assustador que uma parcela da população se sinta representada por uma escória mafiosa no poder. É repugnante como essa escória se retrai sempre que se vê confrontada com contratempos e desafios, voltando atrás por pura tática oportunista, recorrendo à dissimulação e à mentira sem-vergonha, para em seguida retomar seus objetivos.
Mas é, acima de tudo, inconcebível que aliados de primeira hora, entre juízes, militares, banqueiros, empresários, economistas, políticos, procuradores, policiais e até médicos, continuem se prestando a esse jogo de manipulação diante de uma ameaça de proporções bíblicas. A crise da saúde pública deveria bastar para fazê-los ouvir as sirenes. Só que não.
Há limites a serem impostos por lei ao oportunismo corporativo e individualista para que uma sociedade possa existir e prosperar. E nós ultrapassamos todos eles, pelas mãos de Bolsonaro. Só a hipocrisia e a má-fé ainda nos impedem de gritar abertamente, lambuzados no próprio sangue: “Viva a barbárie!”
A suposta estupidez do presidente é na verdade resultado de um longo trabalho de observação e reconhecimento intuitivo das fragilidades e contradições da democracia brasileira, comungando com pares ressentidos, incompetentes e pulhas. A orquestração destes foi o ofício que essa caricatura perversa aprendeu em suas passagens aparentemente estéreis pelo Exército e pelo Congresso. Sua estratégia é o incêndio, insuflar a sociedade contra si mesma.
A comparação com um vírus, assumida em tom de provocação e galhofa pelo próprio, não é esdrúxula. Bolsonaro sabe o material humano que tem nas mãos.
Londres manteve os teatros abertos durante a guerra. Na entrevista ao Libération, Peter Brook contou que quando as sirenes antiaéreas tocavam no início de uma representação, os espectadores eram obrigados a permanecer na sala até o dia seguinte. Como sempre havia atores profissionais e amadores entre o público, eles subiam uns depois dos outros ao palco para cantar e improvisar ao longo da noite.
“Foi assim que, em condições terríveis, nasceu um novo teatro. As condições eram propícias para que os melhores momentos do balé, da ópera e do teatro inglês pudessem eclodir”, disse o diretor.
É esse sentido de público e de sociedade que o bolsonarismo tenta perverter. A enganação do “cada um por si”, sob a capa da cartilha neoliberal, equivale no final das contas à morte de todos.
Bernardo Carvalho é colunista da Folha de São Paulo, romancista, autor de “Nove Noites” e “O Último Gozo do Mundo”.
Fonte: Folha SP