Para que a Bolsa deslanche, o povo vai mal

Desconectados da economia real, rentistas ganham como nunca e brindam à alta das ações. São os abutres da reprimarização da economia – que leva à falência milhares de empresas e atira a população à morte, ou ao desemprego e miséria

Por Paulo Kliass

As páginas de economia dos jornalões e as notícias dos grandes meios de comunicação mal conseguem esconder seu êxtase. As informações a respeito do comportamento recente da Bolsa de Valores tendem a criar um cenário otimista, quase ufanista, de valorização dos patrimônios dos grandes investidores institucionais. Ao longo dessa semana, o índice do Ibovespa vem superando todos os recordes de pontuação, sempre acima da marca simbólica de 130 mil pontos.

Mas, afinal, o que é que essa movimentação toda no mercado bursátil tem a ver com a realidade concreta da economia real, com o desempenho da grande maioria das empresas que não transita por esse circuito e com a vida das pessoas normais? É amplamente sabido que as operações na Bolsa de Valores retratam um Brasil elitizado, marcado pelas grandes corporações empresariais e com forte influência do mundo do financismo. O volume de transações nesse ambiente ainda é bastante insuficiente para que se tenha uma amostra do que ocorre, de fato, com o mundo das milhões de empresas, em especial aquelas de média, pequeno e microporte.

De toda a forma, os negócios na Bolsa têm aumentado ao longo dos últimos, inclusive em relação ao nível de atividades mais gerais. Ao longo dos últimos seis anos, por exemplo, a proporção das transações ali realizadas em relação ao PIB cresceu de 25% em 2015 para 93% em 2020. Há expectativas de que o valor se aproximará do Produto Interno em 2021.

Operações na Bolsa de Valores – Brasil

No entanto, trata-se de um mercado altamente centralizado e concentrado. Apenas 400 empresas estão cotadas para terem seus papéis negociados na B3, como ficou conhecida a antiga Bolsa de Valores de São Paulo – BOVESPA. Por outro lado, do ponto de vista das ações mais negociadas, verifica-se também uma significativa concentração em torno de poucos títulos, como é o caso da Vale, do Banco do Brasil e da Petrobrás. Desse total, apenas 65 papéis fazem parte da lista que compõe o índice IBOVESPA.

Pelo lado dos investidores, a concentração também é a marca. Os grandes operadores são bancos, fundos de investimento, fundos de pensão e demais instituições do mercado financeiro. Assim, fica muito difícil estabelecer uma conexão direta entre os chamados “humores do mercado” e aquilo que se passa na realidade concreta da economia brasileira. Existe uma tendência à ação articulada dos grandes representantes dos interesses do financismo no interior da Bolsa, com influência de boatos e tendências de natureza especulativa.

Mas, então, como explicar a profunda crise econômica e social que o Brasil atravessa e esse movimento localizado de ganhos e valorização em um universo tão seleto e restrito de empresas e ações? Um dos aspectos que ajuda na análise refere-se ao tipo de informação que interessa aos tomadores de decisão nesse circuito. O desemprego atual é recorde, mas o volume recente de transações na B3 também é recorde. O número de mortes provocadas pela covid-19 se aproxima tragicamente de meio milhão, mas os lucros dos bancos continuam registrando valores crescentemente bilionários. Estas são apenas algumas das inúmeras contradições de um dos países mais desiguais do mundo. Assim, os volumes das operações realizadas permitem que o índice Ibovespa siga crescendo de forma impressionante.

Ibovespa – Evolução recente

Ocorre que outros setores da economia que também apresentam bons indicadores localizam-se na área de exportações e do agronegócio. São ramos de atividade que não dependem de um mercado interno, ainda muito marcado pela insuficiência de demanda. São empresas que vendem seus produtos no exterior e recebem suas faturas em dólares ou outras divisas. São verdadeiras ilhas em um país mergulhado na crise profunda, no desemprego elevado e na informalidade no mercado de trabalho. A sua demanda depende apenas da capacidade de compra no mercado internacional. E as tendências apontam, ao contrário do que se passa aqui dentro, para uma recuperação das atividades econômicas nas nações que mais pesam no consumo global.

E aqui entram em cena as chamadas “commodities”, os produtos nos quais o Brasil acabou se especializando ao longo das últimas décadas. São bens de origem mineral ou da agropecuária e que terminam por influenciar também no desempenho da Bolsa de Valores. Variações nos preços das “commodities” ou nas quantidades exportadas afetam diretamente as ações de grupos empresariais diretamente vinculados a elas, mas também influenciam o conjunto de atividades que são dependentes das mesmas. É o caso das empresas de suporte e serviço, as empresas de transporte e logística e o próprio universo do financiamento

Atualmente, há indícios de que o mercado global passa por um novo ciclo de alta nos preços de tais produtos. Os gráficos abaixo exibem a evolução de preços de produtos que interessam diretamente na nossa pauta exportadora.

Soja – Evolução preço no mercado internacional

A soja permanece como sendo o principal produto de nossa pauta exportadora. Os preços atualmente praticados remontam a 2012, com uma significativa recuperação do faturamento do conjunto de empresas envolvidas com a cadeia produtiva da mesma. As expectativas com esses ganhos explicam parte do otimismo da B3.

Porco Magro – Evolução preço no mercado internacional

Outro conjunto de produtos relevantes em nossa pauta exportadora são as carnes. O Brasil ocupa uma posição de destaque nesse ramo, tanto nas vendas internacionais de carne suína quanto da bovina. Os gráficos exibem a recuperação dos preços de ambas, com retorno ao patamar de 2014 para o porco e uma ainda lenta aceleração do preço do boi.

Carne de boi – Evolução preço no mercado internacional

Por fim, temos outra importante mercadoria na qual o país se especializou ao longo das últimas décadas. Trata-se da extração e exportação de minério de ferro. A evolução do preço da tonelada desse mineral guarda uma relação direta com o desempenho econômico e financeiro da Vale, principal empresa mineradora operando aqui dentro e a única representante do ramo da mineração no Ibovespa. As oscilações nos papéis da Vale contribuem bastante para o resultado do observado com o índice da bolsa. O gráfico abaixo permite visualizar as expectativas otimistas nesse segmento. Atualmente, o mercado internacional vive uma elevação recorde dos preços do minério de ferro.

Minério de ferro – – Evolução preço no mercado internacional

Ora, esse conjunto de informações acima arroladas permite compreender o clima de euforia e otimismo que ronda o mercado financeiro. Existe a possibilidade concreta de realização de grandes negócios e que isso termine impactando positivamente os resultados das empresas cotadas na Bolsa. No entanto, tudo segue confinado nesse espaço restrito das atividades vinculadas à exportação.

Por isso, cabe aqui o refrão similar àquele da “economia vai bem, mas o povo vai mal”. A Bolsa até pode ir bem, mas a maioria da nossa população segue sofrendo as agruras do desemprego, da fome e da miséria. Enquanto não houver uma mudança profunda no modelo que continua a determinar nosso crescimento das atividades da economia, haverá a perpetuação de um sistema marcado pelas características da exploração, da concentração e da destruição.

*Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Fonte: Outras Palavras

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