Em meio às novas variantes, bloqueio dos países ocidentais enfraquece. Depois dos EUA, Japão e Taiwan admitem flexibilizar patentes. Até Brasil revê posição. União Europeia resiste.
MUDANÇA DE IDEIA
O Itamaraty finalmente decidiu parar de se opor à quebra temporária de patentes das vacinas contra a covid-19. Não é ainda um apoio, segundo a apuração do jornalista Jamil Chade, mas uma sinalização de que o Brasil vai aceitar discutir na Organização Mundial do Comércio (OMC) algum acordo que envolva a eventual quebra. A preferência, no entanto, continua sendo por formas de negociar a transferência de tecnologia.
Além do Brasil, no último sábado os países da APEC (a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) emitiram uma declaração conjunta se comprometendo a discutir a questão “o mais rápido possível”. O grupo inclui Japão e Taiwan, que vinham expressando reservas em relação à proposta.
Ainda não há consenso entre os países-membros sobre o que fazer. Como já dissemos por aqui, a Índia e a África do Sul modificaram sua proposta inicial e colocaram na mesa a ideia de uma suspensão limitada, por três anos. Ontem, a União Europeia expôs na OMC um projeto alternativo, divulgado na última sexta. O bloco defende que haja um esforço para negociar o licenciamento com as farmacêuticas e, em último caso, usar as regras já existentes para que os governos concedam licenças aos fabricantes de seus países, mesmo sem o consentimento dos detentores das patentes.
A reunião sobre o tema segue hoje. Os países europeus continuam sendo as vozes mais fortes na direção contrária à suspensão. Na segunda-feira, o Médicos sem Fronteiras divulgou uma nota denunciando a União Europeia, o Reino Unido, a Suíça e a Noruega por “empregarem táticas de adiamento” de decisão urgente. A pressão popular sobre os governos se multiplica em diversas campanhas. Cerca de 200 mil pessoas assinaram um pedido direto à Comissão Europeia nesse sentido; a Suíça, outras 20 mil assinaram uma petição da Public Eye e a da Anistia Internacional com o mesmo objetivo. E organização alemã Medico Internacional lançou uma campanha para que as pessoas pressionem diretamente membros do governo alemão e da União Europeia pela quebra temporária.
NO RETORNO
Marcelo Queiroga foi chamado de volta à CPI porque seu primeiro depoimento foi evasivo. Ontem, no segundo, o ministro da Saúde não trouxe grandes novidades. Mas ajudou a deixar claro, pelo conjunto da obra, que sua pasta não apita nada dentro do governo federal: ele reconheceu que, pessoalmente, compreende a não-eficácia da cloroquina no tratamento da covid-19, e também garantiu que tenta explicar ao presidente sobre a necessidade de ele usar máscaras e fazer distanciamento social, mas disse não ser um “censor”, não podendo julgar a conduta de Jair Bolsonaro.
Como lembrou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), Queiroga está espremido entre um chefe anticiência e uma equipe repleta de nomes que compartilham das ideias do presidente, como Mayra Pinheiro e Hélio Angotti – e o ministro, ao mesmo tempo em que dizia se opor ao negacionismo, afirmou não ver necessidade de fazer alterações nessa equipe. Escancarando seu apego ao cargo, ele ainda topou colocar nas próprias costas a responsabilidade por dispensar a infectologista Luana Araújo, que assumiria a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, pois ela não poderia contribuir para “harmonizar” as discussões sobre o tratamento precoce. A fala contraria o que Araújo disse à CPI e o que o próprio Queiroga havia sugerido em maio: que decisão havia sido do Palácio do Planalto. Apesar do que ele tenta fazer crer, é muito difícil comprar a ideia de que sua pasta tenha alguma autonomia.
A CPI trouxe até agora algumas informações importantes, como as evidências de que o governo federal atrasou a compra de vacinas. Porém, faz falta levantar mais elementos que impliquem a possibilidade de responsabilização por atos e omissões.
E não apenas a partir dos depoimentos: o pesquisador da USP Mario Scheffer lembra 76 requerimentos da CPI dirigidos ao Ministério da Saúde, a maior parte aprovada há mais de um mês, ainda estão sem resposta:
“Apenas quatro pedidos de informações foram integralmente atendidos pela pasta, um deles em dobradinha com senadores governistas, sobre recursos federais repassados a estados e municípios. Mais próxima do fim do que do início, tudo indica que a CPI jogou ao mar peças que poderão fazer falta no quebra-cabeça da responsabilização do governo federal, como a insuficiência de leitos, de equipamentos de proteção individual, oxigênio, respiradores, testes e outras providências negligenciadas, que exigiriam cruzamentos das oitivas com documentos ainda não remetidos à comissão”, escreve ele, em coluna do Estadão.
FAKE NEWS
Jair Bolsonaro reconheceu ter cometido um “equívoco” ao mencionar um suposto relatório do TCU que indicaria um número inflado de mortes por covid-19 no Brasil. Mas continuou insistindo nessa mesma velha teoria. Disse ter pedido à Controladoria-Geral da União uma investigação sobre gonernadores que teriam supernotificado os óbitos “em busca de mais dinheiro”. Não mencionou nenhuma prova de que isso teria acontecido: apenas “vídeos de WhatsApp”.
O tal documento que o presidente divulgou como sendo do TCU era, afinal, uma análise pessoal de um servidor, o auditor Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, que incluiu o texto no sistema no domingo. O Tribunal vai apurar sua conduta, considerada grave.
ANTECIPADAS OU DESPEJADAS?
Três milhões de vacinas da Janssen devem chegar ao Brasil na semana que vem, o que foi anunciado pelo ministro Marcelo Queiroga como uma vitória: o governo teria conseguido antecipar a vinda dessa leva, de um total de 38 milhões de doses que seriam entregues a partir dos próximos meses. Mas tem um detalhe: as vacinas “antecipadas” estão quase saindo da validade, e já vencem no dia 27 de junho. O país terá entre 10 e 14 dias para receber, distribuir e aplicar tudo.
A informação foi revelada pela Folha e confirmada por Queiroga na CPI. O presidente do Conass (o Conselho Nacional de Secretários de Saúde), Carlos Lula, disse que os secretários municipais e estaduais foram consultados pelo Ministério da Saúde para saber se valia a pena aceitar a oferta da farmacêutica. A avaliação foi a de que, com “esforço”, é possível aplicar as doses sem perdê-las. “Seria errado se não aceitássemos. Nós precisamos de vacinas. Vamos ter um prazo curto, mas obviamente vai dar para operacionalizar”, diz ao G1 Mauro Junqueira, secretário executivo do Conasems (que reúne os secretários municipais).
Que dá, dá. E é bom receber qualquer quantidade de vacinas, ainda mais sendo de dose única, como as da Janssen. Mas o certo, obviamente, é receber doses com mais vida útil pela frente, de modo que a história toda não deixa de ser péssima. Há pouco tempo vimos que a Janssen vem pressionando países da América Latina a aceitar vacinas já descongeladas, portanto com o prazo de validade apertado.
Ao mesmo tempo, governadores dos Estados Unidos têm alertado a farmacêutica de que doses da vacina vão acabar indo para o lixo, caso não sejam usadas nas próximas semanas ou enviadas para outros lugares. “Mais de 10 milhões de doses da vacina foram entregues aos estados, mas não administradas, de acordo com dados coletados pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças”, diz o New York Times.
SEM VACINA, SEM COLETA
Trabalhadores da limpeza urbana de São Paulo entraram em greve ontem, paralisando os serviços por 24 horas. “Sem vacina, sem coleta!”, gritava um grupo deles, em um vídeo publicado no perfil do sindicato da categoria no Facebook. “A categoria que NUNCA parou merece vacina, respeito e reconhecimento”, diz a legenda.
A prefeitura pediu que aguardem sua hora. E também disse que vai tomar as medidas legais cabíveis, por não ter sido notificada com antecedência sobre a greve. “Imagine se toda categoria fizer greve por vacina”, chegou a declarar o prefeito Ricardo Nunes.
Por mais de uma vez já comentamos aqui que, embora o plano de imunização contra a covid-19 tenha sido desenhado para evitar hospitalizações e mortes – chegando primeiro a pessoas idosas –, ele acabou não dando conta de proteger quem mais morre pela doença no país. Especificamente em relação a São Paulo, no fim de maio o LabCidade (o Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, da USP) mostrou que a fila privilegiou pessoas brancas, ricas e que vivem justamente em regiões onde a mortalidade por covid-19 é menor.
NOVAS METAS
Os países da ONU aprovaram ontem novas metas para acabar com a ameaça da Aids até 2030. O texto final inclui objetivos como o de fazer com que a maioria das nações reformem as leis discriminatórias e exorta os países a “capacitar mulheres e meninas para cuidar de sua saúde sexual e reprodutiva e direitos reprodutivos”. Mas as discussões, que começaram em abril, não foram nada fáceis.
Delegados de alguns países tentaram retirar menções a identidade sexual ou gênero e, em parte, conseguiram. Algumas nações africanas conseguiram incluir um trecho para afirmar que os compromissos adotados na declaração serão adotados “de acordo com as leis nacionais”, sendo que o continente ainda concentra metade dos países do mundo onde a homossexualidade é ilegal.
O Health Policy Watch nota que países como Bahrein, Egito e Líbia se desvincularam das referências a “populações-chave” – grupos considerados particularmente vulneráveis ao HIV, incluindo profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens e usuários de drogas injetáveis – por considerarem que esses grupos vão contra sua cultura. A Rússia, por sua vez, os descreveu como uma afronta aos “valores familiares”. Aliás, ontem, de última hora, a Rússia propôs uma série de emendas para remover referências a uma “abordagem baseada em direitos”, à descriminalização do trabalho sexual e à redução de danos no enferntamento ao HIV. A maioria foi rejeitada, mas o texto final acabou não sendo aprovado por consenso.
E ele não traz nada em relação a patentes. Os Estados Unidos, que recentemente se posicionaram pela suspensão dessas barreiras no caso da covid-19, se moveram na direção contrária dessa vez. O rascunho original pedia “uma moratória indefinida sobre as disposições internacionais de propriedade intelectual para medicamentos, diagnósticos e outras tecnologias de saúde”. Representantes dos Estados Unidos e da Suíça excluíram essa seção, diz o New York Times.
O jornal lembra ainda que as metas e prazos relacionados a esse vírus vêm, infelizmente, se estendendo: “Em uma reunião semelhante em 2016, os países membros concordaram em alcançar menos de 500 mil novas infecções por HIV anualmente, menos de 500 mil mortes relacionadas à Aids e a eliminar a discriminação relacionada ao HIV até 2020. O mundo não atingiu essas metas: cerca de 1,5 milhão de pessoas foram infectadas com o HIV em 2020 e cerca de 690 mil morreram”.
Fonte: Outras Palavras