A Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, de 2017, teve um sabor especial para mim. Sempre tive interesse na mescla entre duas artes: a música e a literatura, por ver na canção brasileira, em especial, uma espécie de espaço poético popular, em um país onde a imprensa tardou a chegar e as pessoas, especialmente as mais pobres, tiveram pouco ou nenhum acesso aos livros.
E quando vi a possibilidade de ver um debate na Flip com a presença do sambista Nelson Sargento (1924/2021) e o jornalista e escritor Lira Neto – autor do livro Uma História do Samba: as origens, Companhia das Letras, 2017 – pensei: está aí a chance que eu queria para levar adiante o meu interesse.
E, de fato, não foi em vão. Mesmo aos 93 anos, recém completados em julho daquele ano, Nelson Sargento foi sempre lúcido, respondeu às perguntas do entrevistador, o jornalista André Barcinski, interagiu com o público e, no final, ainda cantou o samba “Agoniza mas não morre”, de sua autoria.
Quando eu soube na manhã de hoje (27/5) que Nelson Sargento havia morrido aos 96 anos de Covid-19, aquela mistura de entrevista, bate-papo e show musical voltou. E voltaram também outras músicas que ele compôs ou cantou, com sua voz inconfundível, como o Samba do Operário, uma parceria com Cartola e Alfredo Português.. Eis a letra, um espécie de libelo político, feito com arte e sensibilidade:
Se o operário soubesse
Reconhecer o valor que tem seu dia
Por certo que valeria
Duas vezes mais o seu salário
Mas como não quer reconhecer
É ele escravo sem ser
De qualquer usurário
Abafa-se a voz do oprimido
Com a dor e o gemido
Não se pode desabafar
Trabalho feito por minha mão
Só encontrei exploração
Mesmo tendo vivido quase um século, Nelson Sargento morreu jovem. Jovem nas ideias, na postura sempre interessada pelas novidades e no que acontece na política. Naquela presença na Flip, ele sorriu quando a plateia puxou um Fora, Temer! Tenho certeza de que, se puxarem um Fora, Bolsonaro!, durante a sua despedida logo mais, é capaz de ele sorrir de novo, esteja onde estiver. Salve o Samba, que agoniza mas não morre! Salve Nelson Sargento!