BRASÍLIA – O esquema do orçamento secreto criado pelo presidente Jair Bolsonaro para aumentar sua base de apoio no Congresso não se limita a atender a demandas de deputados e senadores. Um documento do Ministério do Desenvolvimento Regional revela que o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), pôde direcionar R$ 15 milhões da pasta para obras e compras de veículos e máquinas. Uma parte desse dinheiro foi repassada por ele ao Piauí, Estado de sua família, distante 700 quilômetros em linha reta de Brasília.
Aliado do presidente, Ibaneis indicou a verba para pavimentação, escoamento e aquisição de carros e, ainda, para despesas “administrativas” e de “fiscalização” da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), na capital federal.
Procurado pelo Estadão, o governador admitiu o envio de dinheiro da sua cota do orçamento secreto a outra unidade da federação. “Todos os recursos destinados ao Distrito Federal foram devidamente aplicados. Nos demais casos, como não havia projetos, o governador destinou as verbas a algumas prefeituras do Piauí”, disse, por meio de nota enviada por sua assessoria. Ele não esclareceu, porém, por que fez repasses ao Estado nordestino.
A explicação de Ibaneis Rocha à reportagem expõe também a falta de critério do governo federal para liberar os recursos à Codevasf. A inexistência de projetos para aplicação dos recursos, destacada na nota do governador, põe em xeque a necessidade de liberação feita pelo governo federal. Também descumpre o termo de transferência do dinheiro do ministério para o órgão, que previa a aplicação no Distrito Federal.
Na segunda-feira passada, o Estadão mostrou que a “estatal do Centrão”, como é conhecida a Codevasf, virou um duto para escoamento do dinheiro do esquema operado pelo governo. Na gestão Bolsonaro, a empresa passou a atuar em bases eleitorais de aliados do governo distantes 1.500 quilômetros das margens do Velho Chico. A sede da estatal fica em Brasília.
Os recursos são provenientes de uma nova modalidade da emenda de relator-geral, a chamada RP9. Bolsonaro vetou uma tentativa do Congresso de impor a aplicação desse dinheiro por “contrariar o interesse público” e “fomentar cunho personalístico nas indicações”. Uma série de 101 ofícios a que o Estadão teve acesso, contudo, revelou que o presidente passou a ignorar seu ato quando se aproximou do Centrão e implementou um “toma lá, dá cá”.
Toda essa negociação que definiu quem seria atendido e o que seria feito com o dinheiro ocorreu a portas fechadas dentro de gabinetes no Palácio do Planalto e distante do controle de transparência. Somente no Ministério do Desenvolvimento Regional foram R$ 3 bilhões liberados para um seleto grupo político, em dezembro de 2020. Como mostrou o Estadão, parte do dinheiro foi direcionada para comprar trator a preços até 259% acima da tabela de referência do governo, o que levou o escândalo a ser apelidado de “tratoraço” nas redes sociais.
O dinheiro que atendeu Ibaneis também vem de emendas tipo RP9, mas é de uma cota anterior, de julho do ano passado. O Ministério do Desenvolvimento Regional tem afirmado que “é do Parlamento a prerrogativa de indicar recursos da chamada emenda de relator-geral (RP9) do Orçamento”. O atendimento ao governador do Distrito Federal contraria essa versão. Procurado ontem, o ministério não se manifestou.
A emenda de relator foi criada em 2019, já no governo Bolsonaro. Ao contrário das emendas individuais e de bancada, ela deveria ser definida conforme critérios técnicos do governo. Documentos aos quais o Estadão teve acesso, porém, indicam que o dinheiro tem sido despejado nos redutos eleitorais dos políticos. O esquema colocou nas mãos de políticos como o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), por exemplo, o controle de R$ 270 milhões do ministério. Ele precisaria de 34 anos como senador para poder manejar esse volume de recursos considerando suas emendas individuais de livre direcionamento (R$ 8 milhões por ano).
Desde domingo, o Estadão revela, em uma série de reportagens, como o presidente Jair Bolsonaro montou o esquema. Ontem, o jornal mostrou que os documentos sobre a operação são mantidos em sigilo por parlamentares. Um grupo de senadores alegou “segurança de Estado” e “risco a sua honra e de sua família” para esconder ofícios em que detalham onde queriam aplicar o dinheiro.
Em resposta por escrito a pedidos feitos pela Lei de Acesso à Informação, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), chegou a justificar que esses documentos devem ser carimbados como “ultrassecretos”. Na segunda-feira, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, declarou que “não tem nada de secreto” na operação montada pelo governo.
O presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar na quarta-feira, 12, a revelação do esquema do orçamento secreto. Na terça-feira, ele negou ter montado a operação para aumentar sua base de apoio. O Congresso discute abrir a CPI do Tratoraço.
Estado de São Paulo