Roberto Seabra (*) –
Em janeiro deste ano, quando terminei de ler o livro A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Editora Todavia), de Bruno Paes Manso, pensei em escrever uma resenha para mostrar a quem quisesse saber que na leitura desse livro estaria uma das chaves para entender o Brasil de hoje. O tempo passou, a resenha não saiu, outros assuntos mais urgentes (para mim) surgiram e esqueci o assunto.
Esta semana o livro me chegou novamente, por uma mensagem, em versão PDF, com um alerta: “Esse livro explica tudo”, escrita pelo remetente, e numa referência clara à chacina de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, onde morreram 28 pessoas, das quais pelo menos 13 não têm qualquer envolvimento com o crime organizado, além de um policial que estava em ação. As demais 14 pessoas, ainda que sejam criminosos – o que está por se provar – deveriam ter sido presas para averiguação e início de inquérito policial. É assim que diz a lei. É assim que funciona no resto do mundo.
Mas o livro de Bruno Paes Manso trata das milícias e a chacina de Jacarezinho foi obra da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O que uma coisa tem a ver com a outra? Bem, vamos à obra e, talvez no final, essa relação fique óbvia.
O que mais me impressionou no livro do jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso foi a capacidade do autor de aliar pesquisa histórica, análise sociológica e denúncia jornalística numa só obra. Não é um livro de um historiador, não é um tratado de sociologia e também não é uma reportagem. Mas consegue ser, de certa forma, as três coisas.
A república das milícias em certo momento volta no tempo para analisar as origens históricas dos grupos paramilitares no Brasil. Um trecho que destaquei explica bem isso:
O primeiro grupo a se organizar para a prática de extermínio se formou em 1957, quando o general do Exército Amaury Kruel, chefe de polícia do Distrito Federal, achou necessário responder às pressões da Associação Comercial e da população, atemorizadas com o crescente aumento do crime de roubo. (…) Kruel montou um grupo para combater assaltos à mão armada, pesadelo do carioca naqueles dias, que ganhou o nome de Turma Volante Especial de Repressão aos Assaltos à Mão Armada (TVRAMA), ligado ao Serviço de Diligências Especiais (SDE) da Delegacia de Vigilância, responsável pela captura de bandidos que a cidade toda considerava perigosos. Depois da criação desse grupo, surgiram nos jornais notícias e fotos de corpos de diversos suspeitos, apontados como ladrões.
Logo em seguida, o autor faz a relação entre aquele banditismo oficial nascente dos anos 1950, ainda durante o governo de JK, e a ditadura militar implantada a partir de 1964:
Muitos policiais que agiam em grupos de extermínio ingressaram na máquina de guerra urbana, atuando no combate a opositores (do regime militar) nos dez Departamentos de Operações de Informação (DOIs) espalhados pelo país, somados aos policiais do Destacamento de Ordem Política e Social (Dops) e aos militares do Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e Centro de Informações da Marinha (Cenimar), órgãos que formavam a espinha dorsal da repressão.
A análise sociológica aparece quando o autor vincula a polícia e o regime militar com a contravenção do jogo do bicho, mostrando como esse modelo está na base do nascimento das milícias:
A proximidade entre os policiais matadores e os porões do Exército trouxe a reboque a influência dos bicheiros — que já era forte em ambas as instituições — para o coração do poder do Estado. A mistura de violência policial e militar com a contravenção formou a base da rede clandestina de violência paramilitar que está na origem dos modelos milicianos.
Ou ainda quando relaciona os números da violência com os dados demográficos:
De 1990 a 2019, mais de 200 mil pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro — a maioria negros, homens, com menos de trinta anos, moradores de bairros pobres.
Mas o livro de Manso é também jornalismo de denúncia. Especialmente quando ele analisa as relações entre a milícia e a família Bolsonaro.
Fabrício Queiroz sempre foi um soldado fiel de seu comandante Jair Bolsonaro. Um mero sargento reformado do subúrbio carioca que, se rompesse seu silêncio, com um simples sopro teria força para derrubar as estruturas do frágil castelo de cartas que sustentava a república das milícias.
É um livro que se explica em sua leitura, tamanha é a quantidade de dados, informações e análises que ele faz, tudo isso exposto de forma didática e transparente em 298 páginas que se lê como uma grande reportagem. Recomendo a sua leitura, para entender não apenas o que originou o governo Bolsonaro, mas, principalmente, para compreendermos as origens da violência urbana no Brasil, que ameaça fazer explodir o que resta da nossa sociedade democrática.