Por Boaventura de Sousa Santos | Tradução (do original castelhano): Antonio Martins
A Colômbia está em chamas. É atualmente um dos países com maior número de mortos pela covid-19, ocupando o quarto lugar na região, depois de Estados Unidos, Brasil e México, tendo até agora apenas 3,5% da população totalmente vacinada e sendo parte dos países que se negam a apoiar a proposta de liberação das patentes de vacinas. É também um país que em 2020 tinha 42,5% de sua população em condição de pobreza monetária e com 15,1% em pobreza monetária extrema. A estes dados, poucos mas expressivos, podemos acrescentar que, após a assinatura do acordo de paz de 2016, foram assassinados entre 700 e 1.100 defensores e defensoras dos direitos humanos (as cifras variam, entra as ONGs e as instituições governamentais). As zonas que antes foram domínio das FARC-EP estão agora em disputa por parte de distintos grupos armados ilegais que, além de almejarem interesses econômicos (narcotráfico e mineração ilegal) também trazem consigo um horrível e sangrento interesse de controle sobre a população civil, que afeta gravemente o tecido social, e é apenas a ponta do iceberg do novo panorama que se desenha no país.
Foi neste contexto, e depois de quase três anos sob o governo de uma direita que contraria o acordo de paz, que o povo trabalhador saiu às ruas, para levantar sua voz contra uma proposta de reforma tributária que buscou, sob a lógica do governo, arrecadar 23 trilhões de pesos (algo próximo a 6,3 trilhões de dólares) para melhorar as finanças públicas e financiar os programas de assistência social. Embora seja certo que o país precisa melhorar seu sistema tributário, o que esta reforma propunha era aumentar o número de pessoas declarando e pagando imposto de renda. Tinha o aval, o ponto de vista e o marco conceitual do FMI.
Propor que mais pessoas sejam encarregadas de contribuir para financiar os gastos do Estado não soa, em teoria, disparatado. E poderia levar a pensar que o aumento de impostos rescindirá sobre as pessoas de maior renda, tendo em conta os princípios de progressividade, equidade e eficiência tributária, consagrados na Constituição Política da Colômbia. Mas, segundo os dados do Banco Mundial, o país é um dos mais desiguais da América Latina (o índice GINI é de 51,3), o que reflete uma política fiscal inadequada e regressiva, que possibilita alta concentração de renda e de riqueza. A reforma proposta se somaria ao vasto e complexo sistema tributário do país, que não expressa uma verdadeira política progressiva e está cheio de benefícios fiscais voltados às pessoas com maior renda.
A partir de 2016 o povo trabalhador inundou as ruas e praças da Colômbia, exigindo a defesa da paz e o cumprimento dos acordos, a proteção dos líderes sociais e a solidariedade com os que foram assassinados. Também rechaçou as proposta de modificação dos regimes de aposentadoria e as contrarreformas trabalhista e tributária. Nos últimos cinco anos, o país viu suas ruas percorridas por jovens, mulheres, indígenas, afros, professores, aposentados e estudantes. Geraram-se fatos insólitos, como a grande manifestação de 21 de novembro de 2019 (o “21N” colombiano), uma das maiores desde a década de 1970. Graças a este empoderamento popular, e apesar da pandemia, a Colômbia voltou a marchar entre 9 e 21 de setembro do ano passado, para protestar contra o abuso policial e o mal manejo da crise econômica e social pelo governo, e para dizer basta aos massacres no país, que não tiveram trégua apesar das medidas de confinamento. Em particular, vale sublinhar a Minga do Sudoeste Colombiano, ocorrida em outubro, liderada por organizações indígenas. Ela emocionou por suas consignas e valentia. Ao percorrer o país, conseguiu mobilizar uma grande parte da sociedade em torno a suas exigências e obteve apoio de milhões de pessoas que receberam calorosamente os participantes em cada cidade, na viagem até a capital.
Foi nesse cenário que a população decidiu, a partir de 28 de abril (o “28A”) marchar contra a reforma tributária e o governo indolente. A repressão das forças policiais é brutal. O mal-estar dos cidadãos foi estigmatizado e reprimido pela força policial, o que levou distintas organizações de direitos humanos a registrar, até 5 de maio, 1708 casos de violência policial, 381 vítimas de violência física por parte da polícia, 31 mortes (em processo de verificação), 1180 detenções arbitrárias, 239 intervenções violentas, 31 vítimas de agressão nos olhos, 110 casos de disparos de armas de fogo por policiais e 10 vítimas de violência sexual praticadas pelas forças “da ordem”. De igual maneira, a Defensoria Pública (expressa na Colômbia pela figura do ombudsman) assinalou que houve 87 queixas por supostas desaparições, durante os protestos da Paralisação Nacional do 28A.
O que começou como forte oposição a uma “reforma” impopular e a um ministro da Fazenda que desconhecia o preço de uma dúzia de ovos (e de toda a cesta básica) cresceu a ponto de não apenas obter a retirada de tal “reforma” no Congresso e a renúncia do ministro, como também que o presidente Ivan Duque Márques propusesse um espaço de diálogo com distintos setores da sociedade civil. Tal diálogo, até agora, parece incluir apenas as elites. As organizações sociais sabem por experiência que deste governo nada de bom se pode esperar, mas como sempre não se recusam ao diálogo. A primeira vitória do movimento cidadão nas ruas – a retirada da “reforma” – não chegou pacífica ou gratuitamente. Além das cifras antes mencionadas, o presidente Duque anunciou a militarização do país antes de ceder ao clamor social. Desde 1º de maio, as redes sociais e as ruas colombianas assistem ao horror de uma mobilização militar típica de estado de exceção ditatorial. A polícia dispara contra manifestantes pacíficos e desarmados. Foi talvez a resposta mais violentamente repressiva, em tempos de pandemia, em todo o mundo.
Particularmente em Cali, os protestos tiveram intensidade especial, graças à mobilização das organizações indígenas, após o assassinato cruel de Sandra Liliana Peña, governadora indígena de apenas 35 anos que propunha a recuperação dos conhecimentos tradicionais e rechaçava a presença de atores armados em seu território. Esta cidade, segundo centro urbano mais negro da América do Sul, cheia de contradições e lutas, viu como seu povo é reprimido da forma mais aberrante possível. A situação é tal que, em meio a uma reunião pacífica, transmitida ao vivo pelas redes sociais, observa-se o esquadrão antidistúrbios comparecendo para dispersar os presentes e provocando a morte de um jovem diante de mais de 1000 espectadores, que acompanharam as cenas pela internet. A partir de Siloé, uma comuna (favela) em Cali, denunciou-se também que durante a noite do 4 de mio não foi possível ter acesso à internet em toda a área.
A débil resposta à violência policial por parte das instituições colombianas (tanto administrativas quanto judiciais) permitiu que civis armados ameacem (e em algumas ocasiões disparem) contra os manifestantes, alegando que são “vândalos” e “terroristas”. Em Cali, os estudantes fizeram circular o seguinte “diálogo”: “Temos 25 mil armas”, gritava um homem vestido de branco numa caríssima SUV estacionada diante da Universidad del Valle (Univalle). “Nós temos uma das melhores bibliotecas do país”, respondeu o estudante. Em Pereira, o prefeito organizava uma “frente comum”, na qual queria incluir membros da segurança privada, exército e polícia, para “recuperar a ordem e a segurança cidadãs”, o que resultou num jovem baleado com oito tiros e agonizando num hospital da cidade.
Para onde vai a Colômbia?
Esta pergunta é importante para o país, mas também além dele. Vejo nos acontecimentos recentes o embrião de muito do que se passará no continente e no mundo, nas próximas décadas. Cada país tem, é claro, uma especificidade própria. Mas o que ocorre na Colômbia parece anunciar o pior dos cenários que previ em meu livro O futuro começa agora – da pandemia à utopia, Boitempo, 2021). Consiste na negação da gravidade da pandemia, na política de sobrepor a economia à proteção da vida e na obsessão ideológico-política de voltar à normalidade, mesmo quando ela significa o inferno para a grande maioria da população. As consequências da pandemia não podem ser magicamente freadas pela ideologia dos governos conservadores. A crise social e econômica do pós-pandemia será gravíssima, sobretudo porque soma-se às crises que preexistiam. As políticas de auxílio emergencial, por mais deficientes que sejam, combinadas com o enfraquecimento econômico, vão causar um enorme endividamento do Estado. O agravamento da dívida será uma causa adicional para cada vez mais “austeridade”. Os governos conservadores não conhecem outro meio de lidar com os protestos pacíficos do povo que não seja a violência repressiva. Por isso, vão responder e a mensagem incluirá a militarização crescente da vida cotidiana. Isso implica uso de força letal contra inimigos externo imaginários . A degradação da democracia, já muito evidente, vai se aprofundar ainda mais. Em que ponto o mínimo democrático que ainda existe entrará em colapso, dando lugar a novos regimes ditatoriais?
Este cenário não é especulação irrealista. Um informe recente do FMI faz a mesma previsão. Os autores Philip Barrett e Sofia Cher dizem1 que as pandemias podem ter dois tipos de efeitos sobre os protestos sociais. Um é atenuante, por suprimir a possibilidade de distúrbios, ao interferir nas atividades sociais. Outro é o contrário: aumentar a possibilidade de mal-estar e, em consequência, gerar distúrbios e protestos, à medida que a pandemia se desvaneça. O que não dizem é que os protestos serão motivados pelas mesmas políticas que o FMI e as agências financeiras promovem em todo o mundo. A hipocrisia do mundo em que vivemos é tanta que o FMI ignora ou oculta as consequências de suas orientações. O povo colombiano merece e necessita de toda a solidariedade internacional. Não estou seguro de que a terão abertamente das agências internacionais que dizem promover os direitos humanos, apesar de que estes estejam sendo gravemente violados na Colômbia. Imaginemos por um momento que ocorresse o mesmo em Caracas, na Rússia ou em qualquer outra parte do mundo declarada como não-amiga dos EUA. Seguramente, a OEA, o alto-comissariado da ONU e o governo norte-americano já estariam em campo para denunciar os abusos e propor sanções aos governos infratores. Por que a suavidade dos comunicados emitidos até agora sobre a Colômbia? Todos sabemos que o país é o melhor aliado dos EUA na América Latina, sendo também o país que se ofereceu para instalar sete bases militares de Washington em seu território (situação que felizmente não ocorreu por intervenção da Corte Constitucional). As relações internacionais no presente veem o momento mais escandaloso de hipocrisia e parcialidade: só os inimigos dos interesses norte-americanos cometem violações aos direitos humanos. Não é algo novo, mas agora é mais chocante. As agências multilaterais rendem-se a esta hipocrisia e parcialidade sem nenhum tipo de vergonha. Os colombianos, estes sim, podem esperar a solidariedade de todos os democratas do mundo. Em sua valentia e em nossa solidariedade reside a esperança. O neoliberalismo não morre sem matar; mas quanto mais mata, mais morre. O que se passa na Colômbia não é um problema local, mas um problema nosso, das pessoas que prezam a democracia no mundo.
No momento, as manifestações na Colômbia não parece próximas do fim. Apesar do ter se passado uma semana desde seu início, devemos insistir em superar o medo que ronda as ruas do país, e persistir na esperança de um futuro promissor, mais justo e em paz, para um país que quis encerrar um conflito de mais de 50 anos através de um acordo que agoniza, sob as garras do capitalismo abissal.