Algumas reflexões sobre o Projeto de Lei nº 5595 de 2020

Por João Monlevade*

“Reconhece a educação básica e a educação superior, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais e estabelece diretrizes para o retorno seguro às aulas presenciais.”

Primeira reflexão – Embora se trate de um texto jurídico, que abarca dispositivos gerais, de alcance nacional, como a LDB, mas de interpretação e aplicação pelos entes, dentro de sua autonomia, no regime de colaboração entre os sistemas de ensino, e oriundo da situação específica da pandemia da Covid-19, torna-se necessária a conceituação de
alguns termos – para orientar o voto dos parlamentares e a manifestação democrática de cidadãos e cidadãs – particularmente dos(as) educadores(as).

Segunda reflexão – Assim, entendemos: “educação” como os projetos e processos pelos quais estudantes se apropriam da cultura da sociedade em que vivem; “educação básica e superior” como os níveis da “educação escolar”, de responsabilidade de instituições encarregadas de ofertar conhecimentos e habilidades por meio da ação de profissionais formados e reconhecidos como competentes no seu campo curricular; “formato presencial”, uma de várias estratégias em que se dão as apropriações de conhecimento, pela interação física entre estudantes e educadores, docentes e não-docentes – dosada e descrita por normas dos sistemas de ensino. Por “serviços” se entende de maneira específica as ações dos educadores; por “atividades”, o que ocorre na interação entre
estudantes, entre educadores e entre ambos em tempos e espaços educativos, devidamente normatizado por gestores, por colegiados escolares e por órgãos dos sistemas de ensino, à luz da legislação vigente.

Terceira reflexão – O “formato presencial” foi, historicamente, o ambiente da apropriação dos conhecimentos e habilidades, concentrado na “sala de aula”, onde o(a) professor(a) até hoje interage com os(as) alunos(as) e, finda uma atividade curricular, os(as) avalia, no sentido de medir o grau de aprendizagem – inclusive para os(as) classificar no respectivo grau de ensino. Mas, com o advento da imprensa e a difusão de livros “didáticos” disseminou-se outra estratégia – a do estudo individual, em que estudantes, por meio da leitura, assimilam conteúdos, por sua vez aferidos em exames e provas. Esta estratégia até hoje é praticada nos “exames supletivos”, uma das ações da modalidade de Educação de Jovens e Adultos, nas etapas fundamental e média da educação básica. Já no século XX, com a invenção dos meios de comunicação auditiva e visual, hoje compactados nas atividades da internet, se consolidou uma terceira
estratégia, inclusive de interação entre educadores e educandos, que se consolidou e se oficializou com a modalidade de “educação a distância” (EAD), reconhecida e largamente adotada na educação básica e superior. O que parecia um limite, por dificultar o contato direto entre professor e aluno e comprometer o desenvolvimento da socialização das novas gerações que transbordava em recreios, fins de semana e meses de “férias”, com a pandemia e o isolamento ao contato do vírus hospedado e transmissível entre seres humanos, tornou-se a estratégia de ensino-aprendizagem mais
“limpa” e eficaz. Evidentemente, se todos os educadores e todos os educandos tiverem acesso qualificado aos meios de comunicação social. Mais do que isso: cada educador(a) deverá dominar as potencialidades de memória e de comunicação virtuais, inclusive didáticas e comprovadamente “substitutas ou potencializadoras” das atividades das
salas de aula, interditadas ou com reduzida capacidade diante da disseminação do vírus que pode levar quem as frequenta à enfermidade e à morte.

Quarta reflexão – Aqui temos que atentar a dois princípios da LDB que caracterizam a educação escolar como DIREITO DE TODOS (Art. 205 da Constituição): o da igualdade de oportunidades e o da qualidade do ensino (Art. 206). Levantamentos realizados em 2020 demonstram dois fatos que afrontam estes dois princípios: decretada em março de 2020 a proibição das “aulas presenciais”, houve uma “corrida” às atividades didáticas via internet no que se esperava fosse uma “quarentena” – que se estendeu em muitos casos a muitos meses. Primeiro, na maioria das escolas públicas, entre 20% e 40% dos estudantes não contavam com um bom acesso às tecnologias virtuais da internet, o que
feria de morte o princípio da igualdade de oportunidades. Segundo, em boa parte delas os professores e professoras tiveram que improvisar suas atividades virtuais, comprometendo a qualidade do ensino, e mais ainda, segundo estudos recentes, a qualidade da aprendizagem. Neste contexto, se sucederam absurdos políticos: o
primeiro, de se negar o direito das famílias e dos professores de contar com equipamento que viabilizasse a frequência a atividades virtuais. Chegou-se a vetar um projeto de lei que aplicasse verbas públicas para a aquisição e distribuição pelas escolas públicas e pelas casas dos estudantes de equipamentos adequados – os quais, por sinal, teriam comprovada utilidade no pós-pandemia. O segundo, de se colocar em dúvida a capacidade das escolas em assumir este “formato” – e, portanto, que era imperioso se proceder à “volta às aulas” o mais depressa possível. No caso das escolas privadas – que dão conta, no DF, de 20% dos estudantes da educação básica e de 70% da educação superior, entrou “pesado” outro argumento: com as aulas suspensas, elas corriam o risco de justificar as transferências para as escolas públicas gratuitas ou, se não, induziriam muitos a simplesmente deixar de pagar as mensalidades – o que levaria à falência grandes e pequenas escolas. Assim, sobrevieram duas consequências indesejáveis, que têm a ver com a essência da escola.

Quinta reflexão – Educação é “serviço dos educadores (ou empresas)” ou atividades dos educandos? Em outras palavras: numa escola de ensino fundamental, médio ou superior, se o(a) aluno(a) não aprendeu, houve ou não houve educação escolar? Concordamos que a educação do estudante é essencial para sua vida, tanto quanto o alimento. Mas não só a educação presencial: o mundo evoluiu, e com ele a ciência e a pedagogia. Tanto quanto a medicina, que está correndo para aperfeiçoar vacinas e descobrir remédios para as enfermidades. Se concordamos que se mede qualquer
qualidade da educação pela aprendizagem dos estudantes (aí está o sucesso do IDEB), temos que investir nos chamados “insumos” da aprendizagem, a que se refere a LDB.

Por isso, o que se precisa fazer em primeiro lugar – ainda mais agora quando as previsões são de que viveremos a pandemia por todo o 2021 – é assegurar o funcionamento do formato moderno e espetacular da educação a distância, pelo investimento na disseminação dos equipamentos e na formação tecnológica dos gestores e professores.

Sexta reflexão – Então, as escolas, como espaços físicos educativos, de convivência entre educadores e educandos e destes entre si estariam superadas, “aposentadas”? Claro que não: mas, tanto pedagógica quanto politicamente, e, filosoficamente, antes da educação está o essencial do ser humano: a VIDA. Por consequência, até mesmo na
perspectiva da empresa escolar privada, mais importantes do que os professores, são as matrículas. Ora matrículas são mensalidades e lucros, mas não existem sem vidas. Daí que o PL 5595 peca por uma confusão injustificável: ele quer subordinar a vida, no caso das escolas privadas, ao volume de lucros; e, no caso das escolas públicas, quer subordinar a vida de educadores e educandos a um conceito de “serviço essencial” – tal como os de provisão de alimentos, de segurança e de transportes, sem os quais a vida em sociedade se dissolve e fenece.

Sétima reflexão – Devemos então fechar as escolas enquanto 80% da população não estão vacinados? No limite, das as circunstâncias do perigo real de contágio, não se dispensa esta hipótese. Mas creio que a questão não é esta. Retornar, e retornar seguramente, não às aulas, mas às escolas – que são insubstituíveis como ferramenta de socialização e educação para os deveres sociais – exige a vivência da cidadania, da ciência e da autonomia, num exercício da gestão democrática. Assim como temos onze artigos da Constituição e noventa da LDB dedicados a regular a educação, as decisões de qualificar a educação virtual e retornar seguramente à vivência escolar dependem do exercício pelas autoridades, pelos gestores, pelos educadores, educandos e suas famílias dos instrumentos da gestão democrática e dos direitos à vida de todos nós, expostos ao Novo Coronavírus. Chega de disputas políticas e pré-eleitorais, chega de mentiras de ministros e secretários acusando os professores de preguiçosos, que não merecem os salários que ganham sem trabalhar, chega da incoerência de nós todos, que não nos organizamos em conselhos e assembleias escolares e que compactuamos com quem coloca o lucro acima da vida ou a obediência abaixo da autonomia e da cidadania.

E nada de achar que a volta às escolas é uma decisão de cada família ou de cada estudante. Por último, muito cuidado: fujamos do “direito” de pais para reivindicar a reabertura das escolas para nos “livrarmos” de nossas crianças; ou do “direito” individual de não usar máscaras, de não manter distância de nossos semelhantes, de não evitar as aglomerações. Afinal, somos educados ou não?

Ceilândia, 1º de maio de 2021. Que vivam os trabalhadores e trabalhadoras !
Prof. João Monlevade
Setorial de Educação PT DF


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