Meu avô se foi. Fez sua passagem e descansou por fim de uma vida dedicada a poesia, a literatura, ao humanismo e a militância socialista em busca do progresso humano.
É difícil encontrar as palavras para esse momento de luto. Escrevo para exorcizar a dor.
Lembro de meu avô contando que em 1961 ganhou uma bolsa de estudos para estudar literatura italiana em Florença: Piradello, Leopardi, Gramsci, Vico, Croce, Manzoni, Giotto.
E Leonardo Da Vinci.
Ele tinha enorme paixão pelo tema do renascimento e humanismo italiano.
Estudou profundamente Dante e me ensinou que “Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura”, é possível entender a utopia que os olhos dos quadros de Giotto sutilmente escondem: utópia mística contra o realismo cínico maquiavélico.
Meu avô se emocionava muito ao ver o filme sobre a vida de São Francisco de Assis e Santa Clara de Pasolini – “Irmão Sol, irmã Lua”. E da relação entre a canção de gesta medieval e a acumulação primitiva de capital do complexo econômico veneziano que fizeram, quinhentos anos atrás um jovem antever a relação predatória do homem frente a natureza que rege o capitalismo.
Quando criança meu vô se fantasiava de lobo e eu de São Francisco para interpretarmos a passagem do Lobo de Gubbio que atormentava os habitantes de Assis. Meu vô de lobo fingia ferocidade e eu o acalmava até ele se tornar dócil e me abraçar. Riamos.
Depois de estudar literatura italiana a fundo, meu vô, por um movimento de amor ao nosso país resolveu se voltar a literatura brasileira.
Se tornou um pensador gigante se valendo de sua crítica literária aguçada para interpretar o Brasil pelo olhar de Machado, Rosa, Drummond, Graciliano.
Sua obra está ai, para ser lida e relida.
Mas seu último livro foi sobre uma paixão antiga: Leonardo da Vinci.
Um livro conciso. Que guarda dentro de si os enigmas do olhar de Alfredo Bosi. Leiam com atenção e afeto.
O que poucos sabem é que em 2019 Unidos do Parque Aeroporto em Taubaté homenageou São Francisco – padroeiro da cidade.
Por meio do afeto das relações verdadeiras, meu avô foi consultado para o samba-enredo oferendo uma aula magna sobre a grande lição de São Francisco: o amor à natureza; natureza essa que padece perante a ganância insaciável do lobo-homem. O desfile teve esse tom e eu tive o privilégio de participar carregando São Francisco num andor.
Alfredo Bosi se foi, mas foi sambando junto com São Francisco.
Da Itália ao Brasil, a Itália de novo e de novo ao Brasil.
O filho prodígio de uma costureira e um ferroviário da Barra Funda.
E lá no alto está, nesse momento, rodeado por todos os bambas do renascimento e da literatura brasileira. E minha vó já preparou um batucajé de três dias. 57 anos casados na terra: vó Créa e vô Fredo agora estão juntos pela eternidade.
E, assim, termino com a frase de Leonardo que meu vô viu na casa do renascentista em Amboise, e que também é a última frase de seu último livro sobre Da Vinci:
“Nenhum ser vai para o nada”
Alfredo Bosi vive em nós
como disse João Nogueira, meu vô vive agora “em nossas casas, bibliotecas e mentes” – e em nossos corações.