SOROCABA – O remédio foi amargo, mas deu resultado. Um mês após esvaziar as ruas em um lockdown que fechou até mercados, Araraquara, no interior paulista, agora vê postos de saúde e UTIs menos cheios. Entre 21 de fevereiro e 21 de março, a média diária de casos do novo coronavírus no Estado aumentou 40%. Já em Araraquara, caiu 58%. Anteontem, outro alento: foi a 1.ª vez em 44 dias que a cidade não registrou morte pela covid-19. Elogiada por especialistas, a experiência também tem motivado outras prefeituras a apertarem restrições.
Araraquara foi o primeiro município paulista com mais de 100 mil habitantes a proibir a circulação de veículos e pessoas ao longo do dia, a não ser em casos excepcionais. O transporte coletivo foi suspenso e outros serviços essenciais, drasticamente restringidos.
Quando a medida foi adotada, em 21 de fevereiro, a rede de saúde estava em colapso, com 100% de ocupação dos hospitais e pacientes graves transferidos para municípios distantes. Também havia sido confirmada a circulação da variante do coronavírus originária em Manaus, que estudos já mostram ser mais transmissível.
Os primeiros dez dias foram de lockdown total e intensa fiscalização – com blitze e multas de até R$ 6 mil. Com 13 dias já não havia fila de espera por leitos de UTI. “Sabíamos que a medida daria resultado, mas não esperávamos que viesse tão rápido, além da nossa expectativa. Estamos vivendo situação bem mais tranquila”, comemora a secretária municipal de Saúde, Eliana Honain. A queda na disseminação do vírus também aparece na proporção de infectados.
Na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Vila Xavier, porta de entrada para casos de covid, chegavam quase 500 pacientes por dia na terceira semana de fevereiro. Agora, este número caiu pela metade.
“Para os profissionais que atuam na linha de frente, não há dúvida de que o lockdown surtiu efeitos positivos na diminuição de pacientes e redução na ocupação nos hospitais”, diz a enfermeira Emanuelle Laurenti, diretora técnica de gestão hospitalar que responde por UPAs e dois hospitais de retaguarda para covid.
Segundo ela, “em tempos tão turbulentos e tristes, lidando com essa doença sem ter a certeza de que o paciente permanecerá vivo”, é preciso agradecer a todos os envolvidos nessa luta.
Em fevereiro, as UTIs registraram lotação máxima durante quase todo o mês. Em março, isso só ocorreu três dias. Agora, com outras cidades do interior no limite, Araraquara ajuda os vizinhos. Metade dos 194 internados no município ontem era de fora. Nas UTIs, 60% são de outras cidades.
Com hospitais cheios e pacientes na fila por UTI, São Carlos tem 27 internados em Araraquara, a 45 quilômetros. Esta semana, a Santa Casa de São Carlos chegou a pedir transferência de seus 30 pacientes de UTI diante do fim do estoque de medicamentos. Manteve os doentes após outros hospitais emprestarem remédios.
“Pode montar mil leitos. Se não conter a contaminação, é impossível conter a alta demanda”, reconhece o secretário de Saúde de São Carlos, Marcos Palermo. Entre as medidas mais recentes, a cidade decretou ponto facultativo dia 1.º e multará em R$ 10 mil quem alugar áreas de lazer para eventos. Mas descarta o lockdown.
Gerente de uma funerária em Araraquara, Rosana Cabral estima alta de 40% nos enterros na fase mais crítica. “Neste ano, nossa funerária chegou a fazer nove atendimentos em um fim de semana, algo que nunca vi antes”, diz ela, que trabalha nessa área há 11 anos. A redução de pressão no setor foi observada só na semana passada. A média semanal de óbitos caiu 39%.
“Salvamos vidas e agora podemos trabalhar na fase emergencial do governo estadual”, diz o prefeito Edinho Silva (PT). Com regras mais brandas que o lockdown araraquarense, a gestão João Doria (PSDB) elevou restrições ao comércio e proibiu aulas presenciais e cultos religiosos coletivos, mas não há veto à circulação de pessoas e veículos. A medida dura até dia 11.
O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, tem sido forte crítico do lockdown desde o início da pandemia, sob o argumento de evitar perdas econômicas. Ele chegou até a acionar o Supremo Tribunal Federal contra os governadores de Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul, que decretaram toque de recolher – a ação foi rejeitada.
Nem todo mundo, entretanto, ficou satisfeito com o fechamento extremo. A Associação Comercial e Industrial de Araraquara instalou outdoors na cidade com a frase: “Srs. governador e prefeito, não há contaminação nas empresas, precisamos trabalhar”. A associação chegou a obter anteontem uma liminar que permita a reabertura do comércio, mas a decisão logo foi revogada pela Justiça.
Funcionário de empresa de equipamentos, Lucas Paravani criticou o fechamento. “Só apoiou lockdown quem tem salário do mês garantido. Para quem ficou sem trabalhar é difícil.” Já a servidora pública Claudia Carrera elogia. “Até o pior negacionista deveria ter humildade de reconhecer que hoje temos leitos, inclusive para ele.”
O prefeito diz que a medida é dura, mas necessária. “Temos de manter o isolamento para o sistema de saúde não entrar em colapso, já que a vacinação ainda não está na velocidade ideal”, diz ele, que também aposta em outras ações, como isolar infectados.
Por outro lado, os bons resultados estimularam restrições mais rigorosas em outras cidades. As vizinhas Américo Brasiliense, Boa Esperança do Sul, Rincão e Santa Lúcia fecharam tudo logo em seguida. Em São José do Rio Preto, o lockdown entrou em vigor no dia 17 e vale até dia 31. Moradores estão proibidos de circular pelas ruas sem motivo justo e podem ser multados em R$ 1.250. Os postos de gasolina só podem atender motoristas de serviços essenciais.
Ribeirão Preto fechou atividades essenciais e proibiu a circulação de pessoas a partir do dia 17, com a rede hospitalar à beira do colapso. O lockdown durou cinco dias e os resultados estão sendo avaliados.
O infectologista Carlos Magno Fortaleza, da Unesp, lembra que o lockdown já funcionou bem em outros países, como Portugal. Em Araraquara poderia ter sido mais eficaz, se tivesse sido adotado por toda a região. “São cidades inter-relacionadas e Araraquara tem relação, inclusive, com o Triângulo Mineiro. Havendo vírus em outras cidades, há risco de voltar. Por isso, não é uma situação perfeita, mas está muito melhor do que antes.”
É importante ainda observar o tempo de isolamento. “Em Araraquara, o lockdown só começou a dar resultados após o 14.º dia. Pessoas que falam contra o isolamento esperam resultado em três ou quatro dias, o que não funciona”, destaca ele.
Para Raquel Stucchi, infectologista da Unicamp, um fechamento nacional não é factível, mas seria importante ter lockdown regional. “Sem dúvida, o lockdown traz impacto econômico com restrições nas atividades. Para minimizar, é obrigatório o auxílio do governo, tanto com auxílio emergencial, como redução de impostos, ampliação de prazos de pagamento dos encargos, subsídios para manutenção dos empregos.”
O auxílio emergencial foi interrompido em dezembro, mas será retomado em abril, com valores menores – de R$ 150 a R$ 375. No ano passado, variou entre R$ 600 e R$ 1,2 mil.
Na guerra contra o vírus, o fechamento rígido não é a única arma. Araraquara vai usar um motel desativado para quarentena de infectados.
O prédio havia sido colocado para locação, mas houve cessão do imóvel em troca de bancar custos. A unidade tem capacidade para 44 pacientes, obrigados a se isolar por 14 dias.
O plano é abrigar, por exemplo, quem mora com muitos parentes, elevando o risco de transmissão. Haverá visitas diárias de equipes médicas. /COLABORARAM DANIEL BRAMATTI e EVERTON SYLVESTRE, ESPECIAL PARA O ESTADÃO