A catadora de papel negra que vivia na favela agora é Doutora Honoris Causa. Embora seja uma homenagem póstuma, a UFRJ reconheceu, com a concessão do título pelo Conselho Universitário (Consuni) nesta quinta-feira, 25/2, a luta e coragem de uma mulher estoica: Carolina Maria de Jesus.
A jornada da escritora improvável começou após os 30 anos, quando se mudou de Minas Gerais para São Paulo após a morte da mãe. Filha de João Cândido e Dona Cota, ambos analfabetos, Carolina nasceu em 14 de março de 1914, em Sacramento, cidade próxima de Araxá e da região do Triângulo Mineiro. Aos 7 anos ingressou no Colégio Allan Kardec, de orientação espírita, onde ficou até o 2º ano do ensino fundamental. Lá, ela abandonou o apelido de criança, Bitita, e aprendeu em pouco tempo a escrever e ler. Com o tempo, tomou gosto por ambos. Playvolume00:00/00:59diariodorioTruvid
Em 1937, aos 33 anos e grávida, passou a viver na favela do Canindé, zona norte da capital paulista, e a se sustentar como catadora de papel. Aproveitava os cadernos usados que recolhia para registrar o cotidiano em que vivia. Assim, deixou uma obra literária que a colocou como peça fundamental na luta antirracista, conforme atenta o parecer que fundamentou a concessão do título, demonstrando que nos últimos seis anos foi tema de 58 teses e dissertações, segundo o portal de publicações acadêmicas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Com o apoio do jornalista Audálio Dantas, em 1958, Carolina publicou o primeiro e mais famoso livro, Quarto de Despejo, a partir de anotações em vinte cadernos. O sucesso da publicação lhe permitiu mudar para o bairro de classe média de Santana. Três anos depois, publicou o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios. Carolina nunca quis se casar e teve três filhos, todos frutos de relacionamentos diferentes. Morreu em fevereiro de 1977, aos 62 anos, de insuficiência respiratória. Outras seis obras foram publicadas após sua morte, compiladas a partir dos cadernos e materiais deixados pela autora.
A honraria Honoris Causa, que significa “por causa de honra”, é concedida independentemente da instrução educacional a quem se destacou por suas virtudes, méritos ou atitudes. O agraciado passa a desfrutar dos mesmos privilégios daqueles que concluíram um doutorado acadêmico convencional. No Brasil, cada instituição de ensino superior define pelo regimento interno quem receberá o título, tendo sido a UFRJ uma das primeiras instituições a concedê-lo, em 1921.
A reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, parabenizou a Universidade pela decisão. “Com muito júbilo, tenho a satisfação de ser a reitora neste momento histórico da concessão deste título. Ter o meu nome associado ao de Carolina de Jesus de forma indelével é uma grande honra”, afirmou.
Do ponto de vista de Susana Castro, diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs/UFRJ) e responsável pela sugestão da honraria, a concessão tem vários aspectos importantes, entre eles o reconhecimento de Bitita no cenário intelectual, artístico e literário brasileiro. “É uma escritora cuja obra é de uma poesia ímpar, que por si só a faz ocupar lugar de destaque entre as escritoras nacionais. O tempo todo é perceptível nas obras o lirismo… Uma preocupação da autora em resguardar aspectos do ambiente em que vivia que, sob olhares, seriam considerados só inumanos devido à miséria e às condições sanitárias. Isso mostra uma grande veia poética, um domínio da capacidade de descrição pela linguagem”, atentou a professora.
Para Vantuil Pereira, um dos que fundamentaram o parecer para a concessão do título, a homenagem póstuma lança luzes para o futuro do país e a possibilidade de desenvolvermos, dentro e fora da Universidade, caminhos antirracistas. Sem dúvida, segundo ele, a decisão é um resgate de um apagamento e esquecimento da autora. “Uma reparação histórica do esquecimento produzido sobre a história dos negros e de personalidades negras marcantes, como é o caso de Carolina de Jesus. Essa reparação tem um papel didático em sociedades como a brasileira, que durante muito tempo viu o negro de forma negativa pelo completo desconhecimento histórico. O reconhecimento nos faz lembrar do papel que teremos pela frente na luta contra as assimetrias raciais, das quais o espaço universitário tem sido um dos locus privilegiados”, afirmou o professor, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH), vinculado ao Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH/UFRJ).