Principais aspectos jurídicos envolvendo a prisão do Deputado Federal Daniel Silveira

Na noite de ontem (16/02/2021), o grande acontecimento que dominou os noticiários do país foi a prisão do Deputado Federal Daniel Silveira (PSL/RJ) decretada pelo Min. Alexandre de Moraes.

Resumo dos fatos

No dia de ontem (16/02/2021), Deputado Federal Daniel Silveira (PSL/RJ) publicou vídeo de 19m9s, no YouTube, no qual afirma:

“(…) o que acontece Fachin, é que todo mundo está cansado dessa sua cara de filha da puta que tu tem, essa cara de vagabundo… várias e várias vezes já te imaginei levando uma surra, quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa corte … quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra… Que que você vai falar? que eu tô fomentando a violência ? Não… eu só imaginei… ainda que eu premeditasse, não seria crime, você sabe que não seria crime… você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível…. então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada com um gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição, não é crime (…)

(…)

(…) vocês não têm caráter, nem escrúpulo, nem moral para poderem estar na Suprema Corte. Eu concordo completamente com o Abraham Waintraub quando ele falou ‘eu por mim colocava todos esses vagabundos todos na cadeia’, aponta para trás, começando pelo STF. Ele estava certo. Ele está certo. E com ele pelo menos uns 80 milhões de brasileiros corroboram com esse pensamento. (…)

(…)

Eu também vou perseguir vocês. Eu não tenho medo de vagabundo, não tenho medo de traficante, não tenho medo de assassino, vou ter medo de onze? que não servem para porra nenhuma para esse país? Não… não vou ter. Só que eu sei muito bem com quem vocês andam, o que vocês fazem.

(…)

vocês deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação, convocada e feita de onze novos ministros, vocês nunca mereceram estar aí e vários também que já passaram não mereciam. Vocês são intragáveis, inaceitáveis, intolerável Fachin.

(…)

Não é nenhum tipo de pressão sobre o Judiciário não, porque o Judiciário tem feito uma sucessão de merda no Brasil.

Uma sucessão de merda, e quando chega em cima, na suprema corte, vocês terminam de cagar a porra toda. É isso que vocês fazem. Vocês endossam a merda. Então como já dizia lá, Rui Barbosa, a pior ditadura é a do Judiciário, pois contra ela não há a quem recorrer. E infelizmente, infelizmente é verdade. O Judiciário tem feito uma, vide MP, Ministério Público, uma sucessão de merdas. Um bando de militantes totalmente lobotomizado, fazendo um monte de merda”.

Ainda na data de ontem, o Min. Alexandre de Moraes entendeu as afirmações proferidas configuraram crime e, no âmbito do Inquérito 4.781/DF, determinou a prisão em flagrante do Deputado. O dispositivo da decisão ficou assim:

“Diante de todo exposto DETERMINO:

a) a IMEDIATA EFETIVAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO, POR CRIME INAFIANÇÁVEL DO DEPUTADO FEDERAL DANIEL SILVEIRA. Nos termos do §2º, do artigo 53 da Constituição Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados deverá ser imediatamente oficiado para as providências que entender cabíveis;

(…)

Que inquérito é esse? Sobre o que ele trata?

O Inquérito 4781 foi iniciado no dia 14/03/2019, pelo então Presidente do STF Dias Toffoli, por intermédio da Portaria GP 69/2019, tendo sido instaurado para apurar fakes news, ofensas e ameaças contra os Ministros da Corte.

Foi designado o Ministro Alexandre de Moraes para conduzir o inquérito.

Confira a íntegra da Portaria:

“O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no uso de suas atribuições que lhe confere o Regimento Interno,

CONSIDERANDO que velar pela intangibilidade das prerrogativas do Supremo Tribunal Federal e dos seus membros é atribuição regimental do Presidente da Corte (RISTF, art. 13, I);

CONSIDERANDO a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares,

RESOLVE, nos termos do art. 43 e seguintes do Regimento Interno, instaurar inquérito para apuração dos fatos e infrações correspondentes, em toda a sua dimensão,

Designo para a condução do feito o eminente Ministro Alexandre de Moraes, que poderá requerer à Presidência a estrutura material e de pessoal necessária para a respectiva condução.”

O STF já decidiu que a instauração desse inquérito não violou a Constituição Federal: STF. Plenário. ADPF 572 MC/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 17 e 18/6/2020 (Info 982). Para mais informações sobre essa decisão, clique aqui.

Vamos agora discutir alguns pontos juridicamente relevantes sobre a decisão do Min. Alexandre de Moraes.

1) O Deputado Federal ou Senador pode ser preso antes da condenação definitiva?

• Regra: NÃO. Como regra, os membros do Congresso Nacional não podem ser presos antes da condenação definitiva.

• Exceção: poderão ser presos caso estejam em flagrante delito de um crime inafiançável.

Isso está previsto no art. 53, § 2º da CF/88:

Art. 53 (…) § 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

Pela redação literal do art. 53, § 2º da CF/88, o Deputado Estadual, o Deputado Federal e o Senador somente poderão ser presos, antes da condenação definitiva, em uma única hipótese: em caso de flagrante delito de crime inafiançável. Isso significa que, pela literalidade do dispositivo constitucional, tais parlamentares não podem ter contra si uma ordem de prisão preventiva.

Trata-se da imunidade formal em relação à prisão, também chamada de “incoercibilidade pessoal relativa” (freedom from arrest).

As imunidades parlamentares são prerrogativas conferidas pela CF/88 aos parlamentares para que eles possam exercer seu mandato com liberdade e independência.

Vale ressaltar (isso será importante mais a frente) que a imunidade prevista no art. 53, § 2º da CF/88 aplica-se não apenas para Deputados Federais e Senadores, mas também para os Deputados Estaduais. Isso porque os Deputados Estaduais possuem as mesmas imunidades que os parlamentares federais por força do art. 27, § 1º da CF/88.

2) O Deputado Federal ou Senador pode ser preso se for condenado em processo criminal com trânsito em julgado?

SIM. O § 2º do art. 53 da CF/88 veda apenas a prisão penal cautelar (provisória) do parlamentar, ou seja, não proíbe a prisão decorrente da sentença transitada em julgado, como no caso de Deputado Federal condenado definitivamente pelo STF.

STF. Plenário. AP 396 QO/RO, AP 396 ED-ED/RO, rel. Min. Cármen Lúcia, 26/6/2013 (Info 712).

REGRA: Deputados Federais e Senadores não poderão ser presos.
Exceção 1:Poderão ser presos em flagrante de crime inafiançável.Exceção 2:O Deputado ou Senador condenado por sentença judicial transitada pode ser preso para cumprir pena.
Trata-se de exceção prevista expressamente na CF/88. Trata-se de exceção construída pela jurisprudência do STF.
Obs: os autos do flagrante serão remetidos, em até 24h, à Câmara ou ao Senado, para que se decida, pelo voto aberto da maioria de seus membros, pela manutenção ou não da prisão do parlamentar.Obs: o parlamentar condenado por sentença transitada em julgado será preso mesmo que não perca o mandato. Poderíamos ter por exemplo, em tese, a esdrúxula situação de um Deputado condenado ao regime semiaberto que, durante o dia vai até o Congresso Nacional trabalhar e, durante a noite, fica recolhido no presídio.

Obs: existe divergência na doutrina sobre a possibilidade de o Deputado ou Senador ser preso por conta de atraso no pagamento da pensão alimentícia (prisão civil). Admitem: Uadi Bulos e Marcelo Novelino. Não admitem: Pedro Lenza e Bernardo Fernandes. Não há precedente do STF sobre o tema.

Em suma, pode-se dizer que o § 2º do art. 53 da CF/88 veda apenas a prisão penal cautelar (provisória) do parlamentar, ou seja, não proíbe a prisão decorrente da sentença transitada em julgado, como foi a hipótese do ex-Deputado Federal Natan Donadon condenado pelo STF na AP 396/RO.

No caso do Deputado Federal Daniel Silveira, ele ainda nem foi formalmente denunciado. Desse modo, não estamos falando em condenação definitiva.

3) Quais os crimes que teriam sido praticados pelo Senador e demais envolvidos?

Segundo decisão do Min. Alexandre de Moraes, o referido Deputado teria praticado, em tese, diversos crimes contra a Lei de Segurança Nacional – Lei nº 7.170/73 (arts. 17, 18, 22, I e IV, 23, I, II e IV e 26).

Vejamos os delitos que foram mencionados pelo Ministro como sendo possíveis imputações contra o parlamentar:

Art. 17. Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito.

Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.

Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro.

Art. 18. Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.

Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.

Art. 22. Fazer, em público, propaganda:

I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;

(…)

IV – de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.

Pena: detenção, de 1 a 4 anos.

Art. 23. Incitar:

I – à subversão da ordem política ou social;

II – à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis;

(…)

IV – à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.

Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Art. 26. Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação.

Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga.

4) Os Deputados Federais e Senadores gozam de imunidade parlamentar. Não seria possível dizer que o referido Deputado está acobertado pela imunidade material? Essa imunidade é absoluta?

NÃO.

Imunidades parlamentares são algumas prerrogativas conferidas pela CF/88 aos parlamentares para que eles possam exercer seu mandato com liberdade e independência.

Existem duas espécies de imunidade parlamentar: material e formal.

A imunidade material, também chamada de inviolabilidade, significa que os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos (art. 53 da CF/88).

Há alguns julgados do STF afirmando que a imunidade parlamentar material (art. 53 da CF/88) seria absoluta quando as afirmações do Deputado ou Senador sobre qualquer assunto ocorressem dentro do Congresso Nacional.

A situação poderia ser assim resumida:

• Ofensas feitas DENTRO do Parlamento: a imunidade seria absoluta. O parlamentar é imune mesmo que a manifestação não tenha relação direta com o exercício de seu mandato.

• Ofensas feitas FORA do Parlamento: a imunidade seria relativa. Para que o parlamentar seja imune, é necessário que a manifestação feita tenha relação com o exercício do seu mandato.

Veja um precedente do STF neste sentido:

“A palavra ‘inviolabilidade’ significa intocabilidade, intangibilidade do parlamentar quanto ao cometimento de crime ou contravenção. Tal inviolabilidade é de natureza material e decorre da função parlamentar, porque em jogo a representatividade do povo. (…)

Assim, é de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento. Somente nessas últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento é de se perquirir da chamada ‘conexão com o exercício do mandato ou com a condição parlamentar’ (Inq 390 e 1.710). Para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa. No caso, o discurso se deu no plenário da Assembleia Legislativa, estando, portanto, abarcado pela inviolabilidade. Por outro lado, as entrevistas concedidas à imprensa pelo acusado restringiram-se a resumir e comentar a citada manifestação da tribuna, consistindo, por isso, em mera extensão da imunidade material.” (STF. Plenário. Inq 1.958, Rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, julgado em 29/10/2003).

No mesmo sentido: STF. 1ª Turma. RE 463671 AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 19/06/2007.

Esse entendimento não pode ser aplicado ao caso concreto, considerando que as palavras foram proferidas pelo Deputado Federal na internet. Nesse sentido:

(…)

7. A incitação ao crime, enquanto delito contra a paz pública, traduz afronta a bem jurídico diverso daquele que é ofendido pela prática efetiva do crime objeto da instigação.

(…)

9. In casu, (i) o parlamentar é acusado de incitação ao crime de estupro, ao afirmar que não estupraria uma Deputada Federal porque ela “não merece”; (ii) o emprego do vocábulo “merece”, no sentido e contexto presentes no caso sub judice, teve por fim conferir a este gravíssimo delito, que é o estupro, o atributo de um prêmio, um favor, uma benesse à mulher, revelando interpretação de que o homem estaria em posição de avaliar qual mulher “poderia” ou “mereceria” ser estuprada.

(…)

15. (i) A imunidade parlamentar incide quando as palavras tenham sido proferidas do recinto da Câmara dos Deputados: “Despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar” (Inq. 3814, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, unânime, j. 07/10/2014, DJE 21/10/2014). (ii) Os atos praticados em local distinto escapam à proteção da imunidade, quando as manifestações não guardem pertinência, por um nexo de causalidade, com o desempenho das funções do mandato parlamentar. (…)

(Inq 3932, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 21/06/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-192 DIVULG 08-09-2016 PUBLIC 09-09-2016)

(…) o fato de o parlamentar estar na Casa legislativa no momento em que proferiu as declarações não afasta a possibilidade de cometimento de crimes contra a honra, nos casos em que as ofensas são divulgadas pelo próprio parlamentar na Internet. (…) a inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresentem nexo direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. (…) O Parlamento é o local por excelência para o livre mercado de ideias – não para o livre mercado de ofensas. A liberdade de expressão política dos parlamentares, ainda que vigorosa, deve se manter nos limites da civilidade. Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação.

STF. 1ª Turma. PET 7.174, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgado em 10/3/2020.

5) O Deputado estava em flagrante delito?

Para o Min. Alexandre de Moraes, sim.

O Ministro afirmou que:

“as condutas criminosas do parlamentar configuram flagrante delito, pois verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o vídeo já conta com mais de 55 mil acessos.

Relembre-se que, considera-se em flagrante delito aquele que está cometendo a ação penal, ou ainda acabou de cometê-la. Na presente hipótese, verifica-se que o parlamentar DANIEL SILVEIRA, ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante.”

6) Os crimes supostamente praticados pelo Deputado (arts. 17, 18, 22, I e IV, 23, I, II e IV e 26 da Lei nº 7.170/73) são inafiançáveis?

O Ministro entendeu que sim.

O art. 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV e o art. 323 do CPP preveem a lista de crimes inafiançáveis:

a) Racismo;

b) Tortura;

c) Tráfico de drogas;

d) Terrorismo;

e) Crimes hediondos;

f) Crimes cometidos por ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Assim, a lista acima é composta por crimes que são absolutamente inafiançáveis. Nunca poderá ser concedida fiança para eles. São inafiançáveis por natureza.

O art. 324 do CPP, por sua vez, traz situações nas quais não se poderá conceder fiança. Veja a redação do dispositivo, em especial o inciso IV:

Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança:

I – aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código;

II – em caso de prisão civil ou militar;

III – (Revogado pela Lei nº 12.403/2011).

IV – quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).

Desse modo, segundo esse inciso IV, não será concedida fiança se estiverem presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal, ou necessidade de se assegurar a aplicação da lei penal).

O inciso IV prevê, portanto, situação em que a pessoa praticou um crime que, mesmo não estando na lista do art. 323 (absolutamente inafiançáveis), não poderá receber fiança por circunstâncias específicas verificadas no curso do processo.

A partir desse dispositivo, o STF construiu a seguinte tese: os crimes que, em tese, foram praticados pelo Deputado são inafiançáveis por duas razões:

1) porque foram praticados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 323, III, do CPP); e

2) porque, no caso concreto, estão presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva, de sorte que estamos diante de uma situação que não admite fiança, com base no art. 324, IV, do CPP.

Veja esse trecho da decisão do Min. Alexandre de Moraes:

“Ressalte-se, ainda, que, a prática das referidas condutas criminosas atentam diretamente contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; apresentando, portanto, todos os requisitos para que, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal, fosse decretada a prisão preventiva; tornando, consequentemente, essa prática delitiva insuscetível de fiança, na exata previsão do artigo 324, IV do CPP (“Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança: IV quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva).

Configura-se, portanto, a possibilidade constitucional de prisão em flagrante de parlamentar pela prática de crime inafiançável, nos termos do §2º, do artigo 53 da Constituição Federal.”

Essa mesma interpretação já havia sido adotada pelo STF na AC 4036, Rel. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 25/11/2015.

7) Se era caso de prisão em flagrante, por que o Min. Alexandre de Moraes expediu um mandado? É necessária a expedição de mandado para cumprimento de prisão em flagrante?

Tecnicamente, não.

Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito (art. 301 do CPP). A prisão em flagrante não precisa de ordem judicial para ser cumprida. Entretanto, no caso concreto, havia muitas dúvidas e questionamentos jurídicos sobre o enquadramento da conduta do Deputado e se seria cabível, ou não, a sua prisão.

Diante disso, o Ministro do STF entendeu recomendável esclarecer, por meio de decisão judicial, a possibilidade da prisão em flagrante, fazendo a sua determinação expressa.

Não há qualquer irregularidade nisso já que se trata de uma formalidade adicional em prol do investigado. A outra opção seria o Ministro na decisão afirmar: qualquer do povo está autorizado a prender o Deputado.

Vale destacar que não é porque foi expedido um mandado de prisão que a custódia, no caso concreto, deixou de ser prisão em flagrante e passou a ser preventiva. A diferença entre essas duas espécies de custódia não está atrelada ao instrumento por meio do qual ela é formalizada.

8) A situação acima é inédita ou existe algum precedente do próprio STF que ampare a decisão do Min. Alexandre de Moraes?

A situação é muito parecida com a prisão do então Senador Delcídio do Amaral, ocorrida em 25/11/2015.

Relembrando os fatos.

O então Senador Delcídio do Amaral, em conjunto com outros investigados, estaria tentando convencer o ex-diretor Internacional da Petrobrás, Nestor Cerveró (um dos réus na Lava Jato), a não assinar acordo de colaboração premiada com o Ministério Público Federal. Isso porque Cerveró iria delatar crimes que teriam sido praticados por Delcídio e por um banqueiro.

Em troca de seu silêncio, Delcídio e o banqueiro teriam oferecido o pagamento de uma quantia mensal em dinheiro à família de Cerveró.

Além disso, o então Senador teria também prometido fazer lobby junto aos Ministros do STF para que estes concedessem liberdade a Cerveró e, em seguida, com o réu solto, o parlamentar iria facilitar a fuga do ex-diretor da Petrobras para a Espanha, país do qual também tem cidadania.

O então Ministro do STF Teori Zavascki ordenou a prisão em flagrante do Senador Delcídio do Amaral e de mais três pessoas. No dia seguinte, a 2ª Turma do STF referendou (confirmou) a regularidade das prisões e as manteve.

Como o processo tramitou em segredo de justiça, a ementa foi muito lacônica:

CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO CAUTELAR. SUPOSTO DELITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA (ART. 2º, § 1º, NA FORMA DO § 4º, II, DA LEI 12.850/2013) COM PARTICIPAÇÃO DE PARLAMENTAR FEDERALSITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS CORRESPONDENTES. CABIMENTO. DECISÃO RATIFICADA PELO COLEGIADO.

(AC 4036, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 25/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-037  DIVULG 26-02-2016  PUBLIC 29-02-2016)

9) Depois de concretizada a prisão em flagrante do parlamentar federal, qual é o procedimento que deverá ser adotado em seguida?

A Constituição Federal determina que os autos deverão ser remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão (art. 53, § 2º).

Assim, ainda no dia de ontem, o STF remeteu os autos à Câmara dos Deputados para que delibere se mantém, ou não, a prisão do parlamentar.

10) O Regimento Interno da Câmara (art. 251) afirma que essa votação sobre a manutenção, ou não, da prisão é secreta. É secreta mesmo?

NÃO. O Regimento Interno da Câmara, nesta parte, é inválido porque se tornou incompatível com o texto da CF/88, que foi alterado pela EC nº 35/2001. Explico:

Na redação original da CF/88, o § 3º do art. 53 previa o seguinte:

Art. 53 (…)

§ 3º – No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos serão remetidos, dentro de vinte e quatro horas, à Casa respectiva, para que, pelo voto secreto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão e autorize, ou não, a formação de culpa.

Com base nesse dispositivo, o Regimento Interno da Câmara previu que a votações para se decidir sobre a manutenção ou não da prisão do parlamentar deveria ser secreta.

Ocorre que a EC nº 35/2001 modificou esse dispositivo, deslocando-o para o § 2º do art. 53 e suprimiu a expressão “pelo voto secreto”. Ficou assim:

Art. 53 (…)

§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

Veja, portanto, que a redação atual não fala mais em voto secreto.

A regra é que as votações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal sejam ABERTAS. Isso decorre do fato de o Brasil ser uma República e de adotarmos a publicidade dos atos estatais como um princípio constitucional.

Assim, a população tem o direito de saber como votam os seus representantes, considerando que eles estão exercendo o poder em nome do povo (art. 1º, parágrafo único, da CF/88).

A votação secreta somente é permitida se for expressamente prevista na CF. Em caso de silêncio, prevalece a publicidade. Tanto isso é verdade que, para as demais votações do Parlamento, o texto constitucional não precisa reafirmar que se trata de voto aberto. É o caso, por exemplo, das demais matérias previstas no art. 53 da CF/88.

Desse modo, o dispositivo do Regimento Interno que previa o voto secreto para apreciar a prisão dos parlamentares não foi recepcionado pela EC 35/2001.

ATUALIZAÇÃO

O Plenário do STF, na tarde do dia 17/02, reuniu-se e, por unanimidade, decidiu manter a prisão do Deputado Federal Daniel Silveira.

Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal

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