Por Tânia Maria Saraiva de Oliveira*
“Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra”.
(Hannah Arendt – Homens em Tempos Sombrios)
O conceito é bem conhecido até de quem leu pouco Hannah Arendt. Mal ou bem aplicado, e para além da polêmica de descrever o nazista Adolf Eichmann não como um monstro, mas como um burocrata medíocre, preocupado com suas rotinas e obrigações funcionais, com pensamento de lugares comuns, a filósofa alemã contribuiu significativamente para nossos questionamentos sobre os sentidos que atribuímos ao mundo, e a evidência perturbadora do que podemos ser capazes de fazer ou de tolerar e tratar como normal ou trivial.
Em Eichmann, Arendt enxergava o indivíduo símbolo do coletivo de uma sociedade massificada que, incapaz de fazer julgamentos do que era humanitariamente correto, por ausência de reflexão, agia sem ponderar o sentido moral daquilo que estava executando. É quando o mal se tornava banal.
O autoritarismo populista de inspiração fascista de Jair Bolsonaro está presente na cena pública desde que ele faz parte dela. Suas entrevistas como um inexpressivo deputado federal já eram recheadas de comentários fundamentados em preconceito e discriminação de orientação sexual, gênero, raça e classe; em pregação de ódio e exaltação à tortura e violência.
Nos movimentos de vaivém executados em mais de dois anos de governo, os raros correspondem àqueles em que Bolsonaro pareceu ensaiar uma inflexão em favor de algum equilíbrio de respeito à democracia e às instituições, em nome da governabilidade. Correspondiam, de fato, à preocupação em proteger sua família e seu mandato. A regra é o destempero, as ameaças, o deboche, o desprezo pelas vidas humanas perdidas, o estímulo a uma histeria coletiva em sua base com propagação de Fake News, o negacionismo científico militante.
Desde que começou a questionar oficialmente o resultado eleitoral de 2018, uma luz vermelha deveria ter sido acesa para o que trama o presidente às sombras de seu mandato. Não é nada simples colocar em dúvida a eleição em que ele mesmo se sagrou vitorioso, por mero capricho de aventar que não deveria ter havido segundo turno. O intuito é colocar em dúvida a eficácia e licitude do próprio sistema eleitoral, com a pauta de voto impresso e alimentar, desde já, a desconfiança para o pleito seguinte, caso não seja vencedor.
A revelação da revista Piauí, em agosto passado, repercutida em outros veículos, de que Bolsonaro fez uma reunião com ministros militares no dia 22 de maio de 2020, com a decisão de intervir no Supremo Tribunal Federal (STF), após ser informado que o ministro Celso de Mello consultou a Procuradoria-Geral da República (PGR) para saber se deveria ou não determinar a apreensão de seu celular e de seu filho Carlos Bolsonaro, deveria ter feito soar todas as sirenes e projetado uma reação das instituições. A base jurídica para substituição dos 11 ministros da Corte, com suposta sustentação no art. 142, da Constituição Federal, ficaria a cargo dos ministros da Justiça, da Defesa e da Advocacia-Geral da União (AGU), André Mendonça, Fernando Azevedo e José Levi, respectivamente.
Eu já refleti em artigo anterior que estamos em um tempo em que nós, cidadãos crédulos em nossas instituições ou temerosos de afetar os generais no poder, assistimos ao processo de avanço do autoritarismo e a ameaça de golpe sem uma reação dos poderes constituídos. Até quando?
Na linha de ler os sinais preparatórios, Bolsonaro apoiou os motins de policiais, que chamou de greve, cujo exemplo emblemático ocorreu no Ceará, com tiros disparados contra o senador da República, Cid Gomes. Desde o início do mandato, participa em média de uma solenidade de militares e policiais por mês, sejam formaturas ou cursos de capacitação.
Em paralelo, o governo vem produzindo uma série de normas, projetos de lei, decretos e portarias, para facilitar o acesso e aumentar o limite para aquisição de armas e munições. Na sexta-feira, 12 de fevereiro, véspera de Carnaval, Bolsonaro assinou quatro decretos com esse teor que entram em vigor em 60 dias. É a linha reta do que afirmou na reunião ministerial no dia 22 de abril de 2020, que foi tornada pública em inquérito no STF: “É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado. E que cada um faça, exerça o teu papel. Se exponha”.
A relação tóxica que Bolsonaro possui com os veículos de comunicação, com direito a xingamentos impublicáveis e constantes ameaças, ganhou na segunda-feira (15) um novo capítulo, quando o mandatário defendeu o aumento da tributação das redes sociais no Brasil, em virtude das ações das plataformas contra notícias falsas disseminadas por ele e seus apoiadores. Afirmou, ainda, que “o certo é tirar de circulação” determinados veículos.
Nem desenhando seria mais claro.
Se entender que suas chances eleitorais são insuficientes, Bolsonaro tentará o golpe. Os inimigos criados já estão dados: a imprensa, os “políticos corruptos”, o Supremo Tribunal Federal, a esquerda e a ameaça do comunismo internacional. Ele tem os generais no governo e cidadãos armados. Faltaria o quê?
Na reflexão sobre a pertinência para pensar a banalidade do mal como dinâmica de comportamento de aceitação tácita de ensaios de práticas ditatoriais, vejo que o exercício de entendimento da adesão ao autoritarismo antidemocrático ocorre na normalidade das relações e no modelo do “normal”, que se apreende dos efeitos da estrutura, que por sua vez submete a sociedade à negação de seus direitos.
É necessário transformar o banal, retirá-lo de seu significado de pouco importante e improvável, e enxergar suas possibilidades reais, sem o que não poderemos enfrentá-lo. Dar nome ao que se torna cada dia mais evidente no desejo e na construção diuturna do presidente, em cada fala e cada gesto: golpe na democracia.
Tânia Maria Saraiva de Oliveira* Advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb – GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
Brasil de Fato
Foto: Lula Marques