“As condições são muito difíceis. Elas exigem que a gente não se conforme com elas. Nos campos de concentração, Walter Benjamin criava clubes de leitura, de debates. Ele criou um foco de civilização no meio da barbárie. Acho que somos capazes disso. As condições são muito graves e, por isso, elas exigem muito. É hora de começar a inventar. Nós vamos ter que dar o melhor de nós”.
As palavras são da psicanalista, jornalista e escritora Maria Rita Kehl.
Para ela, o filósofo do cotidiano dessa pandemia deveria ser o Profeta Gentileza, que escrevia nas ruas do Rio Janeiro a frase: “Gentileza Gera Gentileza, amor à natureza”. “Essa frase deveria ser o lema de todas as pessoas progressistas ou mesmo de centro, basta que elas não sejam adeptas do coiso. Deveria ser o nosso lema nessa pandemia”.
Nesta entrevista, ela trata de traços da personalidade de Bolsonaro –”ele é uma pessoa má”– e do que move seus apoiadores. “As pessoas ficam tão desencantadas que ficam um pouco más”, afirma. Surgiu o que ela chama de clima de “dane-se”. Kehl também avalia as estratégias que os pais devem ter para lidar com os filhos nas limitações impostas pela pandemia, fala de sua angústia com a situação das pessoas que estão tendo que morar nas ruas e elogia a ação do padre Júlio Lancellotti.
Aqui, alguns trechos da entrevista publicada por Tutaméia, 05-02-2021.
Propagação da violência e do dane-se
O que mais me preocupa é o que se espalha entre cidadãos comuns, que não necessariamente são eleitores do cara. Se espalha um padrão de violência. Na ditadura, se falava que o mais perigoso são as baixas autoridades, é o guarda da esquina, o cara que é dono de um negócio pequeno, que vai invocar com você e chamar um segurança para te bater. Vai se criando um clima de violência que está vitimando muito as pessoas, que não necessariamente estão militando, nem sei em quem votaram. Mas você ouve estupro de criança, assassinato. Um pouco porque ninguém está nas ruas. Um pouco poque o que mais se propaga é uma espécie de dane-se. Tô numa merda mesmo, dane-se! As pessoas ficam tão desencantadas que elas ficam um pouco más. Os assassinatos cometidos pelas polícias são casos que a gente conhece muito bem. Com menos gente nas ruas, com menos testemunhas. Matar duas crianças dentro de uma casa! Como aquelas de uma favela no Rio. Entra na casa, vê que são duas crianças e atira. E agora isso vai ficando parte da cultura geral brasileira, da cultura social. A nossa polícia mata…Ahahah.
Há esse aumento dessas maldades, como a polícia nossa, que segue militarizada. Não se pode chegar atirando nas casas das pessoas pobres. Isso me deprime. A indignação e a impotência diante disso nos deprime. Mesmo nessas favelas, eles [os moradores] continuam saindo e dizendo: Parem de nos matar.
Machismo vulgar
Me incomoda a volta de um machismo muito baixo, no grau zero da vulgaridade, lá em baixo, no último degrau da vulgaridade. Isso é estimulado também pelo presidente da República. [Maria Rita lembra do caso da deputada Maria do Rosário (PT-RS), que foi atacada por Bolsonaro ainda quando ele era parlamentar; ele disse que não a estuprava porque ela era muito feia]. Isso passar em branco. Dizer que ele é espontâneo assim mesmo, que fala o que lhe vem à cabeça. Vejo que esse clima está sendo piorado e incentivado com um falastrão histriônico, e não tem consequência. O presidente da Câmara dos Deputados ficou sentado em cima de 60 pedidos de impeachment. E agora tem um que vai ficar sentado em cima de 120, porque é apoiador [de Bolsonaro].
Ele é perverso, não tem conflito interno
Eu não me dedico a pensar nisso [a personalidade de Bolsonaro] de tanto que eu não gosto dele. Ele é uma pessoa má. Essa é uma categoria que não é da psicanálise. É do senso comum. Ele é uma pessoa má. Por que ele ficou mau, se ele apanhou na infância, não é da minha alçada. Não sou analista dele, não serei e não seria. Agora existe o psicopata. Muita gente o xinga de psicopata. Eu não tenho certeza, mas veja. Não existe uma teoria na psicanálise sobre o psicopata. Ele é o perverso, ele é aquele que é equivalente ao que a psicanálise chama de perverso.
O perverso seria uma pessoa que não tem nenhum pudor em instrumentalizar o outro para o seu gozo, para aquilo que lhe dá prazer. Ele pode ser um estuprador, pode ser um estuprador de criança. Ele também pode ser um manipulador, que faz as pessoas acharem que ele é o máximo em fazer o que ele quer. Em geral ele se considera… Ele não está inscrito na mesma lei em que nós estamos. Por isso, que ele não pode ser tratado na psicanálise. Ele não tem sofrimento, ele não tem conflito interno. Quem vai para a psicanálise é quem entra em conflito. Mesmo que tenha feito coisas horríveis, está com sentimento de culpa, está sem saber se escolheu certo a bobagem que fez.
O perverso não tem conflito. Ele acha mesmo que ele tem direitos, se dá direitos de fazer coisas horrorosas para o seu prazer. Ele pode ser um estuprador de crianças. Ele pode viver com isso sem sofrer. Enquanto que o neurótico sofre só de ter tido uma fantasia estuprando uma criança. Ele pode até ficar obsessivo com as suas fantasias, mas ele fica agoniado com isso, vem para a análise, quer saber. Então, este homem [o perverso] não tem conflito interno. Aparentemente, o conflito com ele é com os outros, que não compreendem que ele tem o direito de fazer o que ele quiser. É com os outros que querem cercear o seu direito de fazer maldades. O prazer em fazer maldades mesmo, destruir coisas.
Bolsonaro autoriza idólatras do mal
O juiz que absolveu o cara que estuprou a Mariana Ferrer em uma festa em Santa Catarina. Ele pode não sair na rua matando ninguém, mas ele é mau. Claro que tem gente má em toda a sociedade. A gente se assusta de ver quantas pessoas eram más. Estou usando essa palavra bem simples, bem singela: más. Acontece que quando os dispositivos sociais cerceiam a maldade, condenam, julgam, criticam você não tem o clima na vizinhança para sair defendendo maldades. Essas pessoas provavelmente são maus pais, batem nos filhos, batem na mulher. Ou são mulheres que manipulam os seus maridos para conseguir o que querem. Essas pessoas estão fazendo mal
Mas agora elas estão autorizadas a fazer qualquer coisa. Estão autorizadas pela autoridade máxima da República, que é o presidente. Estão autorizadas e incentivadas. Não acho que todo mundo seja mau. Assim como não todos os apoiadores do Hitler eram maus antes disso [a ascensão do nazismo]. Simplesmente, eles se fascinam por uma figura que parece o pai onipotente. No caso da Alemanha, arrumam um inimigo externo, tem uma inflação altíssima, pessoas passando fome. Ele [Hitler] tem carisma, faz discursos. Felizmente, isso ele [Bolsonaro] não sabe fazer. O nosso aqui é burro demais para isso. Mas lá o Hitler sabia e arrastava multidões. Essas pessoas, antes disso, talvez fossem mais de direita, menos progressistas. Talvez não gostassem de pobre, não queriam aumento de salário para operários. Mas não estavam pensando em genocídio. Quando você cria um dispositivo social que permite que o pior da gente saia pra fora, ele sai para fora. Sai para fora e entra em ação, se tem alguém dizendo a ação. Está liberado.
Houve um clima propício para isso. Um clima do desencanto, da decepção. A Lava Jato fez o trabalho para isso acontecer.
Imaginação na cabeça
É claro que as crianças estão sofrendo, estão ansiosas, que sofrem. Mas não acho que por causa disso vão ficar traumatizadas. A neurose se forma de outro jeito, se forma nos laços íntimos.
Mas nós temos que ter imaginação. Essa pandemia nos mostra como nós perdemos ao desprezar essa faculdade humana. Ninguém é contra ela, mas a gente pensa em competência, inteligência, em capacidade de trabalho. A gente não pensa nisso –que uma escritora mexicana chama de a louca da casa. A louca da casa é a imaginação. E é hora de a gente ter imaginação para a gente inventar coisas.
Não tem uma salvação milagrosa para os nossos filhos. É normal que fiquem entediados, que queiram ver televisão sem parar ou ficar na frente do computador sem parar. E a gente não pode se conformar com isso. Mas não é nos conformar proibindo, trancando no quarto. É inventar coisas muito divertidas e dar um pouco do nosso tempo para fazer com eles”.
Gentileza gera gentileza
Eu me angustio com as pessoas indo pra a rua, passando fome. A brutalidade está muito grande, os discursos de ódio estão muito grandes a situação da violência está muito grande. Nessa pandemia, o meu filósofo do dia-a-dia é o Profeta Gentileza (1917-1996), que andava pelas ruas escrevendo “Gentileza Gera Gentileza”. E escrevia embaixo: “Amor à Natureza. A figura dele era a de um louco de rua. Essa frase deveria ser o lema de todas as pessoas progressistas ou mesmo de centro. Basta que elas não sejam adeptas do coiso. Deveria ser o nosso lema nessa pandemia. Isso faz bem para a gente, faz bem para o ambiente social. É tratar os outros, especialmente os mais fragilizados, com a máxima gentileza possível. Tá na hora de a gente ser muito legal com as pessoas. Isso vai nos salvar da depressão. Estou dizendo isso de uma forma egoísta.
Apesar de você
Tem muita coisa boa para fazer. [Depois da pandemia], a gente vai ter mais gosto pela nossa vidinha banal do que a gente tinha antes. Hoje, ando no quarteirão e sento numa praça e penso: ai que delícia! Antes não tinha essa sensação de maravilhamento.
Vai haver uma grande alegria de retomar a vida no espaço público. Certamente as pessoas vão se abraçar na rua, vão sair cantando. Espero que a gente cante “Apesar de Você”.
Assista: