A democracia não é tão sólida como costumamos achar, a razão não venceu a barbárie para sempre, e a convivência é frágil. O ódio alentado sempre de cima para baixo vai se infiltrando e nutrindo uma massa pronta para a insurreição. Em meio à turba que invadiu o Capitólio no dia 6 de janeiro, muito se comentou sobre o extravagante sujeito fantasiado com peles e chifres, mas menos atenção despertou o lema estampado na altura do peito nos moletons pretos de outros dois sediciosos: “Campo de Auschwitz. O trabalho liberta”. Era o lema que recebia as vítimas do Holocausto.
Custa entender a raiz tão profunda do antissemitismo, além da etiqueta de povo “deicida” imposta pelo cristianismo romanizado aos judeus, além da intolerância religiosa da Idade Média, além do nacionalismo hostil contra as minorias que surgiu a partir do século XIX. Hitler não inventou esse preconceito, embora o tenha levado ao limite. Custa entender, mas o fato é que o antissemitismo segue por aí, profanando tumbas, atacando sinagogas e difundindo boatos nas redes sociais. Nos EUA, na Europa, na própria Alemanha. O monstro adota novas formas e aponta para novos coletivos como bodes expiatórios, mas sempre volta a aparecer.
O inquietante The Plot Against America (da HBO) não é um exercício de história alternativa, não é imaginar que EUA, complacentes com Hitler, se aferraram à neutralidade e deixaram os europeus de joelhos perante os nazistas nos anos quarenta. Não, o terrível é comprovar com que facilidade se espalha o ódio contra as minorias. Não é preciso um líder abertamente fascista ou supremacista: basta que este legitime as ideias extremistas, que faça alguns gestos, que diga que são gente de bem, ou “pessoas muito especiais”. Basta que deixe os fanáticos agirem sem em momento algum se responsabilizar por seus atos. Assim age Lindbergh, herói da aviação e dono de uma retórica incendiária, personagem real, que na ficção alcança a Casa Branca.
David Simon, o criador de The Wire, adaptou como minissérie o romance de Philip Roth, que retratava a si mesmo como protagonista: um menino judeu de Newark, perfeitamente integrado ao seu entorno, que não entende por que repentinamente começa a ser apontado como diferente. A narração é fiel ao livro, não como The Man in the High Castle, a outra história alternativa com nazistas triunfantes (na Amazon Prime Video), com a qual a comparação é inevitável. O que em The Plot… é quase tudo intimismo, a visão do despertar do monstro antissemita pelos olhos de uma família comum e angustiada, em The Man… transborda o romance de Philip K. Dick para se estender como uma fantasia de ficção científica eficiente, mas sem maior mensagem. O romance de Roth é de 2004, muito anterior a Trump, mas a série estreou em 2020, e Simon salienta sutilmente os paralelismos entre o passado mais sombrio e o presente pouco reluzente do seu país.
O que lemos no livro de Roth e o que vemos na série de Simons não são um passado impossível, e sim um tempo qualquer. Já ouvimos essas mensagens venenosas, continuamos a ouvi-las. Em The Plot Against America aprendemos que todos podemos ser judeus de algum modo. Que a faísca pode causar uma explosão a qualquer momento, em qualquer lugar. Num 6 de janeiro qualquer, sem ir mais longe.