Ciência brasileira sofre com cortes de verbas e encara cenário dramático para pesquisas em 2021

Por Breiller Pires

Boletim epidemiológico, carga viral, curva de infectados, média móvel, imunidade de rebanho, cobertura vacinal… Por causa da pandemia de coronavírus, termos técnicos, geralmente restritos ao universo dos infectologistas, passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de brasileiros. A ciência nunca esteve tão em evidência como agora, mas, por outro lado, jamais havia sido tão esnobada por governantes e uma parcela da população que preferem relativizar a gravidade da crise sanitária mundial.

Enquanto a vacina demora a se tornar uma realidade no Brasil, acadêmicos e cientistas viram o ano apreensivos com o futuro das pesquisas e a perspectiva de redução de investimentos em trabalhos científicos nas universidades públicas. Pela previsão orçamentária do Governo Federal para 2021, aprovada este mês no Congresso, somente o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) perderá 34% de sua verba anual. Em 2020, a pasta dispôs de 3,6 bilhões de reais para gastos. No próximo ano, caso o presidente Jair Bolsonaro sancione a proposta de orçamento nos moldes atuais, o montante cairá para 2,7 bilhões de reais, menos de um terço do valor disponibilizado uma década atrás.

A sangria progressiva no ministério, iniciada em 2016, respinga no desenvolvimento de pesquisas. Mais de 60% delas são bancadas por uma tríade composta pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), além da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que é mantida pelo Ministério da Educação. Todas as frentes experimentam cortes em sequência, que devem se agravar no ano que vem.

O CNPq vai amargar redução de 8,3% em seus recursos, contando, por exemplo, com apenas 22 milhões de reais para fomento à pesquisa, o que representa 18% do valor destinado em 2019. Já a Capes perde 1,2 bilhões em comparação aos 4,2 bilhões de reais que dispunha no primeiro ano do Governo Bolsonaro. A situação mais dramática se desenha no FNDCT, que sofrerá um corte de 4,8 bilhões de reais em 2021. Em todos os casos, boa parte dos recursos está condicionada ao cumprimento da meta fiscal e depende de aprovação de orçamento suplementar ao longo do ano. “Isso demonstra claramente um cenário de quase paralisação do setor de Ciência, Tecnologia e Inovação caso o orçamento do FNDCT para o ano que vem se concretize”, manifestou em carta enviada ao Congresso um grupo formado por entidades como a Academia Brasileira de Ciências, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif).

Para Sônia Fernandes, reitora do Instituto Federal Catarinense e vice-presidente do Conif, o corte orçamentário, sobretudo pelo percentual de verbas que ainda podem ser bloqueadas no decorrer de 2021, significa um duro golpe para a ciência brasileira no momento em que ela se provou essencial diante da crise sanitária. “Os impactos da diminuição de recursos serão drásticos. Não poderemos abrir novos cursos nem novas áreas de pesquisa. Ficaremos à mercê da liberação de emendas parlamentares”, projeta.

Desde que ganhou a eleição, em 2018, Bolsonaro se colocou como um líder negacionista científico, postura acentuada na pandemia ao confrontar governadores que, amparados por comitês médicos, adotaram medidas de isolamento social. Em seu plano de Governo, indicou que direcionaria gastos do ensino superior e da ciência para a educação básica, sugerindo a existência do dilema “ou um ou outro”, algo questionado tanto por especialistas em gestão pública quanto por cientistas. O presidente apoia a tese de que universidades públicas são antros de “balbúrdia” e privilegiou ministros, secretários e servidores adeptos da teoria do terraplanismo ou do criacionismo. Um deles é Benedito Aguiar, nomeado presidente da Capes no início deste ano.

Embora a agência tenha divulgado ampliação do auxílio aos programas de pós-graduação, um levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) mostrou que quase 8.000 bolsas permanentes foram cortadas pela Capes durante a pandemia. Em um evento no início deste mês, Aguiar frisou que a agência bateu recorde ao conceder mais de 46.000 bolsas de doutorado em 2020, mas reconheceu a insuficiência do orçamento previsto para a Capes no próximo ano. Ele destacou ainda que o Brasil é o 11º país do mundo em volume de pesquisas sobre a covid-19. Porém, depende de recursos extras para alcançar relevância mundial. “Em termos de impacto da produção científica, precisamos avançar muito mais.”

“Com a pandemia, o investimento em ciência deveria ser maior, não menor”, aponta Sandra Regina Goulart Almeida, reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em cinco anos, a instituição perdeu 100 milhões de reais do orçamento, sendo 60 milhões a menos projetados para 2021. “Voltamos a patamares de 2008”, diz a reitora, sublinhando o impacto da PEC 241, que congelou gastos na educação a partir de 2017, no ensino superior. “Houve diminuição considerável no número de bolsas da Capes e do CNPq. Temos um quadro ainda mais preocupante para o ano que vem.”

Na carta enviada a parlamentares, entidades nacionais do sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação também defendem que o coronavírus gerou a obrigação de aumentar investimentos na área. “No momento crítico de pandemia, recursos para pesquisa básica e aplicada e para a inovação tecnológica são essenciais para o enfrentamento da covid-19, além de permitir a recuperação econômica, como mostram as ações adotadas nos países desenvolvidos.” Outra consequência da crise sanitária, segundo o manifesto, é a possível aceleração da fuga de cientistas do Brasil, já que “a covid-19 tem gestado um cenário hostil para formação, fixação e retenção desses cérebros formados no país”.

Uma das exigências do grupo era a aprovação do projeto de lei que proíbe o bloqueio de recursos do FNDCT, que passou pelo crivo do Congresso no último dia 17. “Agora, além do dinheiro ficar disponível para pesquisas e projetos, os recursos poderão ser aplicados em fundos de investimentos, gerando mais capital para o setor da ciência”, afirmou o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), presidente da Frente Parlamentar de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação e autor da proposta, que depende da sanção de Bolsonaro. Se não for vetado, o projeto pode desbloquear até 9 bilhões de reais para a ciência em 2021.

Doria também faz corte em São Paulo

Posicionado como principal antagonista de Bolsonaro na pandemia, João Doria relembra os tempos da aliança “BolsoDoria” ao cortar 30% do orçamento da Fapesp, fundação que financia bolsas e investe em pesquisas científicas no Estado de São Paulo, incluindo a maior parte das atividades de produção de vacinas no Instituto Butantan. O governador tirou 454 milhões dos 1,5 bilhão de reais anteriormente previstos para a entidade, de acordo com a Lei Orçamentária Anual aprovada pela Assembleia Legislativa.

O corte despertou críticas da comunidade científica paulista, sobretudo após Doria prometer, no fim de novembro, em vídeo gravado com o presidente da Fapesp, não desvincular recursos da fundação. “Vamos somar forças em investimentos na pesquisa, na ciência e na tecnologia, sem gerar prejuízo à Fapesp”, garantiu o governador na ocasião. O Governo de São Paulo afirma ter assegurado a recomposição das verbas ao prever no texto da lei de orçamento decretos complementares e o repasse de 1% do ICMS à entidade.

Apesar do arranjo, cientistas e pesquisadores interpretam a desvinculação de 30% da receita da Fapesp como um retrocesso, já que, assim como no caso dos recursos condicionados a orçamento complementar do Governo Federal, os trabalhos científicos desenvolvidos em São Paulo podem se tornar reféns das canetadas do poder executivo. “A autonomia da Fapesp é garantida pela Constituição estadual e não poderia ser atropelada pelo projeto de lei do orçamento”, explica o professor emérito da USP, Hernan Chaimovich, ex-presidente do CNPq. “[A recomposição por decretos] acaba com a independência da Fapesp, já que a cada ano a fundação teria de negociar um adicional com o Governo.”

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