Grande Sertão Ameaçado: quem são os geraizeiros que defendem o Cerrado

No norte de Minas Gerais, onde a caatinga encontra o cerrado, ao norte de Belo Horizonte e ao sul da Bahia, está o Território Tradicional Geraizeiro de Vale das Cancelas. Nele, estão os geraizeiros, população nativa dos Gerais, descendente de negros, indígenas e europeus. Habitam toda a extensão da região, suas partes altas e baixas, conhecidas como chapadas e grotas.

A família de Adelina Xavier de Moraes, mais conhecida como Dona Adelina, de 81 anos, é uma das 1.800 famílias de geraizeiros espalhadas por 73 comunidades que vivem no território, localizado entre os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis.

Dali, Dona Adelina nunca saiu para canto nenhum, e nem pretende. Nessas terras suas mãos já enterraram mãe, marido, filho. Mas também deram vida, em seu trabalho como parteira, a cerca de 100 crianças. Durante todo esse tempo, as mesmas mãos botaram e tiraram da terra o cultivo do alimento, em harmonia com os limites do cerrado. 

Do mesmo modo, Maria de Lurdes Soares Santos, de 75 anos, ainda cultiva a roça que aprendeu a cuidar desde pequena, junto às cantigas entoadas “em casa, na roça, quando estava a colegagem toda junta”, relembra.

Os versos dizem respeito ao cotidiano e à paisagem de Vale das Cancelas, passando pelas frutas nativas da região, como a gariroba, até os costumes geraizeiros.

“Sou geraizeira até o rasto. Não nego a minha geração, não. Ser geraizeira, moro aqui, nasci, me criei, nunca mudei. A gente conhece o Gerais como se fosse… Hoje não, mudou muito. Hoje é só eucalipto, pinus. De primeira, não, era só mato nativo. A gente navegava dentro dos matos, rasgava as pernas, andava a cavalo, amanhecia o dia cantando, dançando.”

Tanto a história de Dona Maria de Lurdes quanto a de Dona Adelina dizem respeito ao povoamento introdutório feito pelos geraizeiros em terras devolutas do norte de Minas Gerais e aos conflitos fundiários intrínsecos a esse processo, como a expansão por empresas de monocultura de eucalipto e pinus, desde a década de 1970, e produtoras de commodities enviadas ao mercado exterior, como o minério de ferro, atividades que contam com o estímulo governamental para seu desenvolvimento.

Precisa urgente demarcar nosso território para que a gente fique livre desse pessoal de empresa querer dizer que a terra é deles, sendo que nós somos famílias tradicionais 

Na outra ponta, contrapondo- se a esse modelo de produção intensiva da terra, os geraizeiros reivindicarem a posse do território, tido por eles como o único caminho para barrar o avanço das empresas sobre o território para assim preservarem o cerrado, o território onde nasce e se desenvolve toda sua cultura, de modo que é difícil saber onde um começa e o outro acaba.

Regularização e demarcação do território

Em 2015, como primeiro passo para a regularização fundiária, os próprios geraizeiros realizaram a demarcação do Território Tradicional Geraizeiro de Vale das Cancelas composto por 73 comunidades espalhadas em uma extensão de 228 hectares, divididas em três núcleos territoriais: Lamarão, Tingui e Josenópolis.

Três anos depois, os geraizeiros foram reconhecidos como Comunidade Tradicional, no âmbito da lei mineira 21.147, e obtiveram a Certidão de Autodefinição, emitida pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (Cepct-MG).

Com isso, passaram a ter assegurado o direito da consulta prévia, livre e informada acerca de empreendimentos que possam afetar seus bens e direitos, de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Embora tenha sido ratificada pelo Brasil, na prática a legislação tem sido desrespeitada e não impediu empresas de construírem empreendimentos no local sem consultarem as comunidades tradicionais que ali vivem. 

Em seguida, deu-se início ao processo de regularização fundiária e titulação do território geraizeiro dentro do estado por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário (Seda). No ano seguinte, em 2019, foi instituída a Comissão Especial Permanente, na qual a Superintendência de Arrecadação e Gestão Fundiária solicitou à Superintendência de Territórios Coletivos o prosseguimento da regularização.

Ser geraizeiro para mim é um orgulho, porque o geraizeiro convive com a natureza, com o cerrado, produz de forma sustentável. Tudo ele respeita 

Até a publicação desta reportagem, no entanto, não ocorreram avanços nesse processo. Em nota, a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) afirmou que os processos de regularização “têm sido permanentemente discutidos com a participação direta dos representantes das comunidades integrantes dos núcleos Josenópolis, Tingui e Lamarão”.

Parte 2: Grande Sertão Ameaçado: o monocultivo de eucalipto no norte de Minas Gerais

“Entretanto, a discussão da posse das terras é conflitante e são várias demandas judiciai, o que atrasa os procedimentos”, diz o texto encaminhado à reportagem.

Uma das lideranças geraizeiras, Adair Pereira de Almeida, de 46 anos, disse ao Brasil de Fato que “todas essas empresas não respeitam o povo geraizeiro, as terras nossas que eles invadiram”.

“Eles falam que a gente é invasor de terra. Nós não somos invasores de propriedade de ninguém, porque esse é o nosso território. Eles é que invadiram”, afirma Almeida. Ele ressalta que, no processo de regularização, a vida da comunidade “tem sido de muita luta, desde muito tempo”

“A gente quer o território geraizeiro demarcado. É dever do governo do Estado proteger a população tradicional. A única maneira de vencermos é demarcando o nosso território. A gente vem cobrando das autoridades essa regularização”. 

Dentro do processo de regularização, uma das etapas é o desenvolvimento de laudos periciais antropológicos, cujo objetivo é reconhecer dentro da comunidade geraizeira a identidade e a territorialidade sobre as quais as comunidades se expandiram ao longo desses 150 anos.

O objetivo dessa perícia é comprovar que se trata de uma população nativa daquela região, portanto com direitos legais intrínsecos, como a demarcação e regularização fundiária. Para isso, Almeida reivindica que a realização desses laudos seja feita por especialistas de universidades, consideradas “imparciais” pela população geraizeira.

“Nós queremos que a universidade faça o que o governo não faz, porque a universidade tem condição de trazer os antropólogos, os geógrafos, os sociólogos para conversarem com a gente, como a gente quer esse território, como a gente vive aqui, fazer o laudo antropológico, a regularização fundiária”, afirma. 

Identidade geraizeira

Parte desse processo envolve diferenciar o que é ser geraizeiro, explica Mônica Nogueira, antropóloga da Universidade de Brasília (UnB) e autora do artigo Gerais a dentro e a fora: identidade e territorialidade entre Geraizeiros do Norte de Minas Gerais. 

“O modo de vida geraizeiro é baseado também no manejo dessas paisagens, no reconhecimento das suas potencialidades, mas também marcada por um profundo respeito, por uma identificação com essa paisagem a ponto de eles assumirem um etnônimo que os vincula a ela, porque geraizeiro vem de Gerais, que é uma forma de localmente chamar o cerrado”, afirma Nogueira.

Historicamente, os geraizeiros se estabeleceram em áreas de transição, nas bordas do cerrado, quando este passa a se misturar com a caatinga. Eles desenvolveram um modo de vida adaptado a este meio, descrito como um mosaico de paisagens, desde as áreas mais secas àquelas com mais árvores de troncos grossos e tortuosos.

Nas palavras de Almeida, ser geraizeiro é “ter liberdade”, assim como seus antepassados a “fazer a roça onde quisesse”

“Às vezes tinha um geraizeiro que falava: ‘Você me dá um corte de roça naquele mato para eu fazer, porque a minha terra não está produzindo, precisa descansar’. E era essa harmonia, e os limites eram marcados pelas árvores. Quando chovia, a água ficava só turva, não avermelhava como agora”, explica Almeida.

Outro aspecto da liberdade reivindicada pelos geraizeiros é a que seus antepassados tiveram para “criar o gado onde queriam, soltavam o gado com liberdade”.

A criação do gado “na solta”, em que os animais são criados livremente, sem cercas é uma das principais características da cultura geraizeira e do manejo que fazem do ambiente à sua volta.

Em uma visita à casa do geraizeiro José Francisco Nunes, de 63 anos, na comunidade Boa Vista, Almeida perguntou a Zé de Santa, como é conhecido, onde estavam as cabeças de gado, ao que o amigo respondeu: “Estão por aí. Daqui a pouco elas voltam”. E voltaram.

Para Mônica Nogueira, não por acaso os geraizeiros se referem à expansão do monocultivo de eucalipto sobre seu território fazendo-os recuar cada vez mais a áreas menores, de encurralamento. “Eles estão fazendo referência justamente a quando o gado tem de ficar confinado no curral. Isso informa sobre a presença forte que tem a criação de gado no modo de vida geraizeiro”, afirma a antropóloga.

Além da criação do gado na solta, os geraizeiros praticam o extrativismo, na qual retiram da natureza os recursos que estão disponíveis, mas sempre respeitando os limites da própria terra e seus ciclos. Um exemplo é a colheita de mangaba: se utilizam apenas daquelas que já caíram do pé.

Aliado ao extrativismo, os geraizeiros mantém produção agrícola em pequena escala e diversificada, em contraposição à produção em larga escala e pasteurizada de eucalipto, realizada pelas empresas. Exemplo disso é a roça da geraizeira Maria das Dores Ferreira, de 33 anos, na comunidade de Lamarão.

Em um espaço de oito hectares, rodeado por eucalipto e por um megaprojeto de mineração da Sul Americana de Metais (SAM), Dôra, como também é conhecida, cultiva uma diversidade de frutas, legumes, verduras e animais: alface, brócolis, couve, cenoura, maxixe, abóbora, abobrinha, maracujá, melancia, mangaba e pequi, entre outros.

“É bom, porque tem muita fruta. A gente come, os passarinhos comem, os bichos comem. Eu me mantenho alimentada, com alimentação saudável, e os animais também. Agora nessa época tem mangaba, cagaita, jatobá, fruta de leite, rufão. Guariroba também logo vai chegar. Só tem coisa boa. Tem os pés de pequi. Cai no chão, pega, corta e cozinha, no arroz ou com sal”, comemora Dôra. 

Para a antropóloga Mônica Nogueira, o que caracteriza os geraizeiros “é essa identificação profunda com o lugar, esse sentido de autonomia na produção do próprio alimento, da própria vida, essa capacidade de imersão real no ambiente que te coloca em um outro nível de conhecimento a respeito do que passa à volta, a ponto de saber bem conviver com isso, manejar de uma maneira mais mais respeitosa”.

Nesse sentido, ao se reafirmar como geraizeiros, essa população tradicional também se coloca em defesa do cerrado, uma vez que sua própria identidade se entrelaça a este bioma. 

Falta de assistência do Estado

Um relato corriqueiro entre os geraizeiros é a falta de assistência por parte do Estado para o desenvolvimento da produção agrícola geraizeira, como financiamento para compra de equipamentos, cursos técnicos de aprimoramento de plantio e colheita, construção de estradas para chegar às grotas, as partes mais baixas dos territórios, e até mesmo luz e água encanada para algumas casas. 

Quem deveria enxergar a gente não enxerga. O serviço da gente é como se não tivesse valor 

Segundo o geraizeiro Valdir Gouveia, de 58 anos, programas como o Programa Nacional de Habitação Rural​, criado no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, em 2009, por exemplo, ainda não chegou até as comunidades do Vale das Cancelas. A finalidade do projeto é possibilitar o acesso à moradia digna no campo.

“Também é necessário apoio para construir estrada, incentivo na agricultura, trator para gradear a terra, nós não temos essas coisas. Nós não temos um incentivo, não tem um técnico também para dar assistência pra gente”, afirma Gouveia.

Como demanda principal, Gouveia volta, como todos os geraizeiros, à demarcação da terra, necessária para garantir acesso aos demais direitos reivindicados pelas comunidades.

“O documento que nós temos não serve para fazer empréstimo no banco. Precisa urgente demarcar nosso território para que a gente fique livre desse pessoal de empresa, querer dizer que a terra é deles, sendo que nós somos famílias tradicionais, ancestrais, sétima geração, um século e meio”, afirma.

Do mesmo modo, Maria das Dores Ferreira espera que alguém “olhe para o lado dos produtores rurais” geraizeiros.

“A gente espera muito que as pessoas lá de cima possam ver que a gente também tem valor, não só as empresas”, afirma.

“Seria bom demais se a gente conseguisse um financiamento, se tivesse mais técnico para poder nos ajudar a entender o que está errado, ajudar a gente desenrolar onde está errado. Se tivesse alguém para olhar para o nosso lado para enxergar que a gente consegue trabalhar. Mas na verdade quem deveria enxergar a gente não enxerga. O serviço da gente é como se não tivesse valor”, lamenta.

Agroecologia como solução

“Ser geraizeiro para mim é um orgulho, porque o geraizeiro convive com a natureza, com o cerrado, produz de forma sustentável. Tudo ele respeita. O geraizeiro não derruba todo o mato, ele planta associado à plantação, depende do cerrado”, explica Adair Pereira de Almeida.

Em um antagonismo que diz por si só, ele costuma dizer que o mineiro aprendeu a explorar a terra enquanto os geraizeiros aprenderam a viver nos Gerais preservando a terra. “A forma de lidarmos com o meio ambiente, com a natureza é bem diferente do mineiro. O mineiro cava profundamente, muda o rio de lugar, faz túnel grande e acaba prejudicando o lugar que ele mesmo vive igual a gente vê lá em Mariana”, afirma.

O modo de produção dos geraizeiros é o modo agroecológico: sem utilização de agrotóxicos, respeito ao limite produtivo da terra, sem exaurir sua capacidade de produzir, diversificada, em contraposição às monoculturas de commodities.

“No cerrado tem o pequi, a mangaba, o rufão, a fruta de leite, a salva vida, o robalo, o coquinho azedo. O cerrado tem uma potência tão grande que mesmo com o avanço da monocultura ainda resiste com o seu povo. É bom demais ser geraizeiro”, conclui.

Para a geógrafa Sandra Helena Gonçalves Costa, autora do estudo Recantilados, entre o direito e o rentismo: grilagem judicial e a formação da propriedade privada da terra no norte de Minas e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, reconhecer os geraizeiros como tais e sujeitos de direitos e estimular o desenvolvimento do modo de produção geraizeiro é justamente dar uma alternativa ao modo de produção do agronegócio, que já desmatou 50% do Cerrado.

Para Costa, é necessário negar esse modo de produção que não traz desenvolvimento, “só faz sedimentar a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho de fornecedor de matéria-prima, de commodities, que não produz tecnologia”.

O que está em jogo são os interesses de grandes corporações empresariais, como as produtoras de celulose e papel, de carvão para a siderurgia, de empresas mineradoras estrangeiras.

Em suas palavras, “o mundo não sustenta mais o capitalismo, o consumo. Não dá mais para viver nesse modelo. Podemos reconhecer outras formas de estar na terra, de lidar com a terra, de produzir, de trazer né outra relação com a terra”.

Edição: Leandro Melito

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