Alexandra Martins
Ainda que a ida de Guilherme Boulos (PSOL) para o segundo turno da eleição municipal em São Paulo interfira na acomodação de forças do campo progressista, a sobrevivência do partido ao qual ele está filiado está ameaçada. No âmbito nacional, o PSOL obteve apenas 1,6% dos votos nas câmaras legislativas municipais. Já em cidades com mais de 500 mil habitantes, 4,8%, mostram os gráficos elaborados pelo cientista político Jairo Nicolau.
O risco do PSOL reside na cláusula de desempenho estreada neste ano com novo regramento para o Legislativo. Ela estabelece que só terão acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda eleitoral os partidos que obtiverem, no mínimo, 1,5% dos votos válidos para deputado federal, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas; ou tiverem elegido pelo menos nove deputados distribuídos em pelo menos um terço dos Estados. O resultado do pleito municipal deste 2020 pode servir de indicador para o sucesso futuro do PSOL.
“O PSOL continua sendo um partido miudinho”, resume o pesquisador ao analisar a performance dos partidos de esquerda em 2020. Desse campo, o PT se mantém na liderança nacional (ver Figura 1) em número de votos nas Câmaras Municipais das cidades com mais de 500 mil habitantes, onde reside a maioria da população, seguido pelo DEM e Republicanos. No restante dos municípios, se coloca em 7º, atrás de MDB, PSD, DEM, PSDB e Republicanos.
Por outro lado, o PT manteve a tendência de redução de cidades governadas. São somente 179, contra 254 obtidas em 2016. Na frente do partido, há outros 10, com o MDB como vencedor de prefeituras neste ano. “O melhor indicador da força de um partido é o voto para a Câmara Municipal, e não cadeira, porque a cadeira já está filtrada pelo sistema eleitoral”, esclarece Nicolau.
Na conversa que segue abaixo com o BRP, o pesquisador destaca, enquanto um dos fatores que lhe chamaram atenção desta eleição, o desempenho do Republicanos no campo da direita pela distribuição equilibrada no gráfico de assentos no Legislativo conquistados em cidades pequenas e, melhor que o PSD, nas grandes (Figura 5). E ainda saltou de 103 para 208 executivos municipais obtidos. Ele avalia ainda que 2022 não seria o momento com mais chances para o PT voltar ao poder.
O professor da FGV-RJ, UERJ, IESP é autor de vários livros nas áreas de sistema eleitoral e partidos, entre eles o mais recente O Brasil dobrou à direita, das editoras Zahar/Cia das Letras.
BRP – Como ficou o mapa da esquerda nesta eleição municipal?
Jairo Nicolau – O PT está num bom caminho do ponto de vista do seu sucesso futuro (ver Figura 1), que é garantir uma distribuição bem equilibrada pelo País, e sobretudo tem um bom desempenho nas grandes cidades, onde reside grande parte dos eleitores. O PT cresce no lugar certo, ao contrário do PDT e PSB, que vão piorando nas grandes cidades. O PSOL, claramente, tem uma dificuldade de se interiorizar, de ampliar seu leque para as pequenas cidades do Brasil, mas tem uma votação boa nas grandes cidades. É um partido que tem uma base estudantil na classe média forte, de uma certa franja da esquerda estudantil. Tem a cara dos centros urbanos.
O PT e PSOL têm algumas diferenças entre si. Quando o PT surgiu, ele tinha o apoio das comunidades eclesiais de base da igreja, que levou o PT para várias pequenas cidades, do Movimento dos Sem Terra, dos sindicato dos trabalhadores rurais. Depois que o PT chegou ao governo com o ex-presidente Lula, o partido se interiorizou, muito pela máquina. As pequenas cidades passaram a ser um lugar natural de crescimento.
O PSOL nasce em meados dos anos 2000 (seu registro no TSE é de setembro de 2005). Vamos dizer que tenha 15 anos. O PT chegou ao poder em 2002, com 22 anos de existência. Fazendo um paralelo, é como se o PSOL só chegasse ao governo em 2027. Quero dizer com isso que a diferença entre os dois partidos é gigantesca. O PSOL continua sendo um partido miudinho. A comparação com o PT é totalmente indevida. Ele não está seguindo a trilha do PT.
No começo nos anos 1980, o PT tinha uma forte base universitária no movimento estudantil, um apoio da classe média urbana e progressista de capitais. O PSOL está seguindo essa trilha, mas falta a ele o interior rural, as pequenas cidades. Ele faz tudo isso numa densidade menor. Nacionalmente, o PSOL está abaixo de 2% de votos nacionais para as Câmaras Municipais. É muito pouco. É arriscado para a sua sobrevivência.
BRP – O que te chamou atenção nos resultados da eleição?
Eu destacaria quatro aspectos: você tem o PT solitário, mais uma vez, como principal força da esquerda.
No centro, o PSDB foi melhor que o MDB, com uma votação equânime pelo território, não afundou e se ganhar São Paulo sai melhor ainda.
Na centro-direita, acho que o DEM é a grande estrela, que foi melhor que o partido do Gilberto Kassab (PSD) e outros partidos de centro-direita.
Na direita, tem um fator que me chama atenção que é o desempenho do Republicanos. Ele foi bem nas grandes cidades, no âmbito nacional, é um partido que passou a ser o caminho da família Bolsonaro.
Como força orgânica de direita, o Republicanos talvez ocupe o lugar onde o PSL tinha vocação para ocupar. Porque eles têm a rede da Igreja Universal e de outras que se atraem. Nessa eleição, o partido sinaliza como da direita, ou da nova direita. O PSL foi mal nas urnas. Talvez o Republicanos se torne a principal força de direita do País.
BRP – Fale sobre a diferença entre ter maior número de votos e maior número de assentos nos legislativos municipais.
O melhor indicador da força de um partido é o voto para a Câmara Municipal, e não cadeira, porque a cadeira já está filtrada pelo sistema eleitoral. Você pode ter 8% de votos na cidade e não eleger nenhum vereador. O número de votos é um termômetro melhor do desempenho, e ele é que vai dar voto, quer dizer, é ele que vai servir de base para votação de deputado federal, estadual. É o melhor indicador de enraizamento dos partidos no âmbito local.
Por conta desse filtro, no Rio, eu sei que o PCdoB foi mal, não elegeu nenhum vereador, teve por volta de 1,5% de voto para o cargo. Eu não posso desprezar esse voto porque quando eu somo 1% do Rio, são 30 mil ou 40 mil votos, isso é o que vai ajudar um deputado federal a se eleger. Se eu conto só a cadeira, ele (o deputado federal) está fora. Quando trabalhamos com votos, juntamos tudo na cesta de derrotas, é tudo junto.
BRP – Há um chororô agora pela volta das coligações. O caminho mais indicado seria a fusão de partidos?
A minha expectativa, como estudioso do assunto e cidadão, é de que os dirigentes preferissem o caminho da fusão, da redução da pulverização partidária brasileira. Por que nós temos tantos partidos? A centro-direita, por exemplo, está ainda mais fragmentada que a esquerda. Não é à toa que os políticos trocam tanto de legenda, ainda que agora menos. A devastação da regra do fim das coligações aconteceu nos pequenos municípios, onde existiam 5 ou 6 partidos, passando a ter metade ou menos.
Quem sabe se o PTB se fundisse com o PP… Mas eles têm interesses locais, o sujeito é dono do partido, prefere ser o líder daquela organização do que compartilhar poder, mas o movimento agora é no sentido da redução (partidária).
O sistema partidário brasileiro é o mais fragmentado do mundo. Já bateu todos os recordes. A recente minirreforma politica impulsionou no sentido do enxugamento. Agora vai ter pressão (pela volta das coligações), mas, acredito, a melhor notícia é que os partidos grandes e médios não querem. Por que o PT, DEM ou PSDB vão apoiar a volta das coligações?
Os partidos médios estão só esperando. Eles vão ser os grandes beneficiados nessa legislação. Os pequenos vão chorar, como com a cláusula de desempenho, mas a votação que resultou no fim das coligações foi apoiada por unanimidade. Até andei lendo hoje (sexta, 20) como foi a votação. Minha impressão é que foi votado de maneira atabalhoada, sem pensar, porque se eles tivessem pensado eles não apoiariam. Não tem sentido. Para os médios e pequenos, foi um tiro no pé.
Eu espero que não acabe (o fim das coligações) por várias razões. Primeiro porque coligação é uma aberração e, segundo, porque para uma norma fazer efeito, ela precisa de tempo. Na primeira eleição da história sem coligação, desde 1945, tirando as do regime militar, o resultado é prejudicial para algumas forças e elas já querem trocar? Não dá. Tem que trocar o comportamento, ou seja, não dá para sobreviver.
Por que a Rede vai existir? Já não tem dinheiro, não tem tempo de TV, dinheiro de fundo, por que não se funde com o PV, com o Cidadania e vira uma força um pouco mais adensada? O PCdoB vai ter de pensar também. Temos um sistema que é muito benéfico para as pequenas legendas, que se acostumaram à vida fácil. Eles mesmos aprovaram a reforma, não foi aprovada por nenhum cientista político, nenhum jurista, nem pelo Supremo Tribunal Federal. Foram eles que tomaram essa decisão, de criar cláusula de desempenho e fim das coligações. A primeira reclamação agora é natural, mas o ambiente é muito pouco favorável para o retorno das coligações.
BRP – A partir desses resultados, ainda que em nível municipal, qual tendência é possível perceber pensando no Congresso e seus desejos para 2022?
O futuro no Congresso vai ser o resultado do desenho dessas eleições com o efeito das novas regras (fim das coligações). Nós devemos ter, se tudo correr bem, porque para mim esse é um passo importante, uma concentração do quadro partidário em algumas legendas médias e maiores. Vamos ficar com 15 a 20 legendas, o que é muito ainda, mas elas devem ser as sobreviventes. Outras, juridicamente, podem existir, mas não de fato. Vai ter uma hora que o sujeito vai fechar sua sede. Essa tendência de enxugamento vai persistir e não deve ter entrada de novos atores partidários.
Para 2022, eu destacaria essas quatro forças: DEM, que é um ator privilegiado no debate por ter quadros, nomes, por ter saído fortalecido na eleição deste ano e ser um ator central; PT, porque é óbvio; PSDB, que também é óbvio porque tem governos importantes, estrutura bem ou mal em muitos Estados; e, no campo da direita, eu apostaria no Republicanos como um partido que potencialmente seja o desaguadoiro do bolsonarismo sobrante, como o bolsonarismo que está no PSL.
Não sei se vai ser esse atual Republicanos, mas é ao menos em torno do Republicanos, onde acho que o bolsonarismo deverá fincar as bases para disputar 2022.
O MDB fica como o PSD, que é um partido que tem força nas urnas, mas que não se traduz em força nas grandes negociações para a disputa presidencial. Tem tudo para eleger mais do que 30 deputados federais, para continuar sobrevivendo como um partido médio, importante, mas não sai das urnas como ator central para o debate presidencial, para o qual temos esses três: PT, DEM e PSDB.
BRP – E como vai a curva do antipetismo para 2022 nesse baile?
O antipetismo vai se amainando. É natural que o PT, pelo seu sucesso, gerou um sentimento de rejeição forte (hoje na faixa de 30% do eleitorado, segundo pesquisa citada pelo professor). À medida que o partido está fora do poder, fora da centralidade da discussão fundamental do País, ocupada pelo Bolsonaro, vão aparecendo novos quadros, o tempo vai passando, a rejeição vai diminuindo, mas ainda é alta a rejeição ao PT.
O paradoxo é que quanto menor for a chance de o PT ganhar em 2022, menor vai ser a rejeição ao partido. Talvez o momento certo para o PT voltar à cena seja 2026. 2022 está próximo para uma disputa PT versus Bolsonaro de novo. O antipetismo vai continuar em alta. Se o bolsonarismo tiver outra força política, de centro-direita ou algum candidato de esquerda não petista, pelo menos esse benefício o PT vai ter, e com isso ele pode se recuperar, passar por um processo de arejamento. É natural.
Quando a Margareth Tatcher (ex-premiê britânica) ganhou as eleições em 1979, os conservadores só voltaram ao poder muitos anos depois. O Partido Socialista Espanhol também. É muito comum que em democracias um partido fique um tempo fora. Se o PT perdeu 2018 e perder mais uma, não é nada… Não estou dizendo que isso vai acontecer, claro, estou dizendo que para o antipetismo, paradoxalmente, é melhor perder. Mas não quer dizer que o PT não possa disputar com o Bolsonaro. A tendencia é que ele vá reconquistando eleitores e as pessoas comecem a revalorizar as prefeituras (governadas pelo partido). Partidos ganham, se desgastam, perdem, vão para oposição, se recuperam e assim fazem a graça da política.
BRP – Por último, acredita que Boulos nacionalizou esta eleição?
Por eu não ser de São Paulo, não consegui acompanhar muito de perto a campanha dele, nem quais temas ele tratou na televisão. Pelo que me chegou de material de campanha e pelo que eu vi em jornais, é que ele teria feito uma campanha muito inovadora nas redes sociais, conquistando a juventude, algo importante, já que uma parte dela se dividiu em 2018, sobretudo com jovens do sexo masculino indo para Bolsonaro e as meninas seguindo Haddad. Tudo indica que foi a melhor versão de uso das redes sociais para um candidato de esquerda recentemente no Brasil. Esse é um território monopolizado pelos candidatos de direita, sobretudo do campo bolsonarista.
E também, que considero que seja algo para se ficar de olho, é que o Boulos, de certa maneira, conseguiu fazer algo que muita gente falou que ele não ia conseguir, que é se comunicar com uma parte dos eleitores pobres de São Paulo, com uma linguagem um pouco diferente. Ele recupera uma parte desse eleitorado.
Seriam duas virtudes então: o uso eficiente das redes sociais para um candidato de esquerda, capturando o apoio de parte da juventude, e o fato de ele conseguir, mesmo sendo um candidato com uma marcação muito ideológica, se comunicar com um mundo que a esquerda perdeu, o das grandes cidades, das periferias. Quando eu digo esquerda estou falando das eleições presidenciais recentes e, de certa maneira, do desempenho do PT desde 2010, que vai piorando nas grandes cidades, nas metrópoles, como eu tentei mostrar no meu livro (O Brasil dobrou à direita).
Não foi totalmente nacional porque não é uma disputa entre um candidato bolsonarista e um antibolsonarista. É uma disputa clássica, que parou no tempo, da esquerda versus PSDB, com o Boulos ocupando o espaço do PT. / Alexandra Martins
Gráficos elaborados por Jairo Nicolau