por Emiliano José
Marighella travou uma dura batalha interior, fez prevalecer a vitória sobre a dúvida, teve coragem para escolher, capacidade para retificar caminhos e se superar
Às vezes, nos perguntam se não queremos esquecer tudo aquilo. E em nome do que o faríamos? E quem disse ser possível?
O terror daqueles 21 anos de ditadura não pode ser esquecido.
Há até quem deseje o esquecimento.
E luta e luta e o terror o revisita, de um jeito ou de outro.
Em nossos corpos, em nossos espíritos, estão marcas cravadas para sempre. As feridas não cicatrizam, e volta e meia sangram.
A direita e a extrema-direita querem o esquecimento – sabem também da impossibilidade, mas vão continuar insistindo.
E nós, por dever, por ânimo revolucionário, por lealdade aos nossos mortos, pelos sonhos defendidos por eles, pelos nossos sonhos de hoje, jamais esqueceremos.
Na tentativa sempre presente de evitar a repetição do terror, das perseguições, das prisões, sequestros, tortura, mortes, desaparecimentos, ausência de liberdades – assim foi a ditadura entre 1964 e 1985, o terror.
Escrevo em dia de chuva forte. Salvador, um dia triste: 3 de novembro de 2020. Triste por evocar a lembrança de Carlos Marighella, um dos mais notáveis revolucionários brasileiros. Triste porque véspera do assassinato covarde da noite de 4 de novembro em São Paulo, passados já 51 anos.
Já escrevi muito sobre ele. Um livro e dezenas de artigos e ensaios. Ele tem sido objeto de estudos de tantos autores. Mereceu bela biografia de Mário Magalhães. Filmes, o último dos quais de Wagner Moura, ainda inédito no Brasil, e que tive o prazer de assistir em Havana, no final do ano passado.
Marighella não é personagem simples. Provoca controvérsias. Odiado à direita, não é preciso insistir. Sua adesão à perspectiva militarista, a orientação da continuidade da luta armada nas cidades, o desprezo à organização partidária depois de décadas de militância no PCB, tudo isso suscitou e suscita discussões, controvérsias, à esquerda.
Assalta-me a lembrança do prefácio de Antonio Candido ao meu livro, Carlos Marighella – o Inimigo Número Um da Ditadura Militar, cuja primeira edição é de 1997. Uma reflexão serena. Creio oportuno recorrer a ela.
Os homens de alto relevo, quando capazes de corresponder ao que há de mais profundo nas aspirações e necessidades de todos, vão conquistando esferas afastadas de seu exclusivo modo de pensar e de ser, até despertar a admiração e o respeito até mesmo dos que não concordam com as suas ideias. O alcance e o significado de sua trajetória vão sendo reconhecidos por todos, salvo os sectários e fundamentalistas – e aqui é acréscimo meu.
Antonio Candido lembra exemplos desses homens de alto relevo e como adversários passaram a olhá-los depois de algum tempo.
Protestantes acabam admirando São Vicente de Paulo, pela ação social que fundou.
Ateus admiram o fervor corretivo de Lutero.
Comunistas homenageiam a atuação humanizadora de João XXIII.
Todos eles, acentua Antonio Candido, encarnaram tendências e anseios relacionados com as necessidades e aspirações mais positivas do ser humano.
E aí, chega a Marighella.
Não importa estarem ou não de acordo com as ideias dele, mas não será difícil reconhecer nele um dos que encarnaram o que o Brasil contemporâneo tem de melhor: a luta para superar a iniquidade que encharca a nossa vida social e nos faz ser uma das nações mais injustas da terra – e como essa reflexão é atual, não?
Para chegar a esse homem de relevo, como o chama Antonio Candido, para se elevar a esse digno papel de representante de aspirações e necessidades legítimas de todos, Marighella travou uma dura batalha interior, fez prevalecer a vitória sobre a dúvida, teve coragem para escolher, capacidade para retificar caminhos e se superar. Mesmo sob a tempestade das denúncias do stalinismo, em 1956, não se afastou do caminho – era corrigir a linha, seguir na estrada. Houve os que abandonaram o barco. Ele não.
Até chegar ao golpe de 1964, e passo a passo à conclusão: a luta armada era o único caminho para enfrentar a ditadura. Abandonava a fase partidária ortodoxa.
Marighella tinha razão? Antonio Candido faz a pergunta crucial.
A resposta, dirá, depende da posição de cada um.
Ele registra: o que não padece dúvida é que a luta de esquerda, em suas várias modalidades, foi e é um dos esforços mais importantes para tentar estabelecer no mundo uma norma mais justa e mais humana de vida em sociedade. E este foi o alvo de Marighella.
Ele se refere àquele século 20, mas como isso soa tão atual, não?
Procura ser amplo.
Do ponto de vista dos ideais do socialismo, erro e acerto, êxito e malogro nem sempre correspondem à qualidade real das posições e dos combates.
Assim, os que nos partidos comunistas do mundo agiam sob a orientação da União Soviética stalinista podiam, vistas as coisas com o olhar atual, estar seguindo uma política cheia de aspectos negativos nos seus métodos, mas isso não diminuía a qualidade essencial da sua ação, nem comprometiam a justeza dos seus objetivos, que era a vitória do socialismo.
Em tais casos, a própria luta se torna justificativa, como diz de certo modo um verso de Victor Hugo – que Deus abençoa o homem, não por ter achado, mas por ter procurado.
Provavelmente, defende, pode-se dizer o mesmo quanto à luta armada com que Marighella e seus companheiros lutaram contra a ditadura dos militares, preparando o advento de uma nova sociedade.
A luta de Marighella, na leitura de Antonio Candido, com esse enquadramento, é uma lição de idealismo, destemor e dignidade.
Muito acima de malogros e eventuais equívocos, destaca-se o exemplo de luta destemida, corajosa, destinada a pôr fim à atroz desigualdade econômica e social a nos afrontar pelos séculos.
Isso é dito por alguém, acentua Antonio Candido, cujas posições sempre foram muito diferentes das de Marighella, até opostas.
O que importa é destacar, avaliar o significado de uma grande vida, “dedicada ao que houve de melhor nas esperanças deste século sangrento”.
Este, o testemunho de um dos maiores intelectuais brasileiros ao revolucionário que não teve tempo para ter medo.
Não, não nos esqueceremos:
Marighella, presente!