Cora Rónai
O Globo, 05/11/2020
Em 2016, Donald J. Trump estava pessoalmente em jogo: era a novidade contra ‘o sistema’, o outsider, a aposta num estilo radicalmente novo e desconhecido de governar. Agora, passados quatro anos de mentiras, de ataques pessoais e de afronta a tudo o que entendemos como ‘valores democráticos’, já não são apenas nomes que estão em questão, mas duas formas distintas de ver o mundo e de fazer política, duas maneiras antagônicas de ser.
Trump só teria sido verdadeiramente derrotado com uma vitória avassaladora dos democratas, um repúdio amplo ao que ele significa. Uma eventual vitória de Joe Biden num placar tão apertado perde o peso moral que deveria ter.
O recado claro das urnas, qualquer que seja ele daqui para a frente, é bastante claro, e reforça o significado do que aconteceu há quatro anos: civilização é um valor superestimado.
Nós, que damos valor ao humanismo e à ciência, que acreditamos em compostura, fatos e bondade, estamos sendo varridos do mapa. Nós criamos ilusões a respeito da nossa espécie que não se sustentam, ou que se sustentaram por um brevíssimo espaço de tempo na nossa longa História – e, ainda assim, numa pequena parte do planeta.
Durante essa fase passageira, dizia-se que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.
Acreditava-se, de verdade, na superioridade da virtude, na vitória da civilização sobre a barbárie.
Foi uma ilusão bonita, mas foi apenas isso, uma ilusão.
Biden pode vir a ganhar as eleições, mas, a essa altura, num sentido moral mais amplo, essa vitória já não significa nada. Nas telas de todas as emissoras e nas páginas de todos os jornais está o mapa eleitoral dos Estados Unidos, desenhado, com toda a clareza, com seu imenso miolo vermelho – como aqui, como na Hungria, como na Turquia, como nas manifestações contra as máscaras e contra vacinas.
A humanidade não é Albert Schweitzer, Nelson Mandela ou a Madre Teresa; a humanidade é Trump.
Não adianta quebrar o espelho.