Por Lucas Valença
Com uma manobra patrimonial, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), evita pagar uma cifra milionária em impostos com a publicação de dois atos direcionados às empresas do próprio Chefe do Executivo e de sua ex-esposa, Luzineide Getro de Carvalho, emitidos pela Secretaria de Economia, subordinada à sua gestão.
Ao total, 139 imóveis de propriedade do governador e de sua ex-mulher, com valor estipulado em cerca de R$ 61 milhões, estão listados para serem isentos do pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) de maneira irregular, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. Um detalhe que chama a atenção é a velocidade com que as decisões tramitaram no Sistema Eletrônico de Informações (SEI), em menos de 10 dias.
Os imóveis pertencentes à empresa do atual governador deveriam, em tese, pagar ITBI porque estão sendo transferidos para o nome da ex-esposa neste ano de 2020, como ocorre nas transações imobiliárias comuns.
Atos sob suspeita
Os dois Atos Declaratórios (nº 362 e nº 363) foram emitidos, em 24 de julho deste ano, pela Secretaria Executiva de Fazenda, subordinada à Secretaria de Economia, comandada pelo supersecretário André Clemente, e assinados pela gerente de Controle e Acompanhamento de Processos Especiais da Coordenação de Tributação da Subsecretaria de Receita, Cristiane Araújo de Faria.
Os documentos obtidos pela reportagem dizem respeito à “suspensão” de cobrança de ITBI das empresas Ibaneis Administradora de Bens Patrimoniais Ltda (registrada no CNPJ: 10.615.495/0001-17) e Luzineide Administradora de Bens Patrimoniais Ltda (CNPJ: 13.727.043/0001-15), fruto de uma cisão. O endereço das duas imobiliárias, no entanto, ainda coincidem. A separação legal ocorreu em 2011, mas somente agora há a transferência dos imóveis.
O ato de nº 362 suspendeu o pagamento do tributo de um imóvel no valor de R$ 5 milhões que, segundo os documentos, será transferido ao governador Ibaneis. Já o de nº 363 isenta de imposto outros 138 imóveis que já começam a ser entregues à Administradora de Bens ligada a contadora Luzineide, ex-esposa do político, com quem esteve casado por 22 anos.
A justificativa para conceder o benefício aos imóveis, que somam um valor milionário, é de que o artigo 156 da Constituição Federal, em seu inciso II, parágrafo 2º, afirma que o imposto não “incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”.
No entanto, a mesma norma faz algumas ressalvas. Segundo o texto constitucional, se a “atividade preponderante” do adquirente for a “compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”, a cobrança ocorrerá. Por esta razão, apenas o argumento de que a empresa passou por uma cisão não valida o não pagamento das contribuições.
Outros dois documentos da Receita Federal mostram que a atividade principal das duas empresas está caracterizada como sendo de “aluguel de imóveis próprios”. Os registros das pessoas jurídicas também apontam que a atividade secundária é de “compra e venda de imóveis próprios”, o que vinculariam as imobiliárias às exceções previstas na legislação atual, que estabelece o pagamento do ITBI.
O texto que isenta o atual governador do pagamento do tributo, porém, afirma que a suspensão da cobrança ocorre em “face de até o momento não ter sido caracterizado a atividade preponderante da empresa adquirente”, argumento contrário às atividades listadas no próprio cadastro das empresas. O adiamento, porém, leva em conta o decreto de nº 27.576/06 que, em seu parágrafo 2º estabelece que, “considera-se caracterizada a atividade preponderante, quando mais de 50% da receita operacional da pessoa jurídica adquirente” decorrer das transações listadas no próprio decreto e no artigo constitucional.
Como não se trata de Holdings, mais de 50% da “receita operacional” vem das atividades listadas na razão social das empresas, ou seja, aluguel e venda e compra de imóveis, não contemplados pela legislação em vigor.
Cifras milionárias
A reportagem buscou levantar também o valor venal (preço estipulado pelo poder público) de cada um dos 139 imóveis contemplados pelo benefício e descobriu que a soma total dos bens ultrapassa o montante de R$ 61 milhões, segundo dados públicos obtidos no site da Receita do DF. Assim, se for utilizado a menor alíquota prevista para o ITBI de Brasília, que, em 2020 está estipulada em 2,5%, as empresas teriam de pagar um montante mínimo de R$ 1.527.280,37. Para o ano de 2021, no entanto, quando a alíquota cairá para 2%, o valor mínimo a ser pago ficará em R$ 1.221.824,30.
Vale ressaltar que o preço venal de imóveis, muitas vezes, são estipulados com valores inferiores aos de mercado. Assim, como o imposto incide no preço de venda, as quantias a serem pagas podem ser bastante superiores.
(Veja os valores de cada um dos imóveis que receberam a benesse fazendária)
*Apenas um dos valores não foi encontrado no portal da receita, que se refere ao 98º imóvel listado entre os beneficiados.
A reportagem também conseguiu registros de imóveis, listados para receberem o benefício, em dois cartórios da cidade, o 1º e o 7º, e que se referem às duas empresas. Como exemplo, está um imóvel que, após a concessão dos benefícios fiscais, foi transferido para a empresa de Luzineide no dia 31 de agosto, aproximadamente um mês depois da existência dos atos.
Registrado com a matrícula de nº 12424 no 7º Ofício de Registro de Imóveis, o bem transmitido sem o pagamento de ITBI, já que foi “suspenso”, diz respeito a um espaço comercial de área privativa de 222,48 m² em Sobradinho e no valor venal de R$ 883.414,55.
Também sob os cuidados do 7º Ofício de Registro de Imóveis e registrado com a matrícula de nº 8984, um terreno com área total de 9.750,00 m² e orçado em R$ 5 milhões, foi o único transferido para as posses da empresa ligada ao governador. Trata-se de um imóvel de caráter “industrial urbano”.
Já no 1º Ofício de Registro de Imóveis, está um dos imóveis com maior valor venal da lista de 138 bens. Com a matrícula de nº 50599, a “residência individual” no Setor de Habitações Individuais Sul, está orçado em R$ 6.497.947,14. O 78º imóvel listado possui uma área total de 1.087,50 m² e foi adquirido pela empresa de Ibaneis em 2009 por R$ 2.8 milhões, segundo o próprio documento lavrado em cartório.
Velocidade processual
Dois registros, também obtidos pela reportagem, mostram que os Atos Declaratórios de números 362 e 363, duraram oito e seis dias, respectivamente, até serem formalizados.
Muitos dos atos declaratórios têm servido para dar isenção fiscal a igrejas e a grandes empresas com atuação no Distrito Federal, como ocorreu com as companhias de transporte rodoviário que atuam na capital federal. As desonerações de diversos impostos cobrados pelo Governo do Distrito Federal (como IPVA; IPTU; ITCD; ITBI; e ICMS) chegam a cifras milionárias.
Gestão Ibaneis
Advogado e ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) da seccional do Distrito Federal, Ibaneis Rocha tem enfrentado problemas em sua gestão. Ameaçado recentemente por uma possível CPI da Pandemia que investigaria os possíveis desmandos na saúde que levou a cúpula da Secretaria de Saúde à prisão, o emedebista passou a entregar parte de sua estrutura administrativa a parlamentares locais para evitar uma investigação também por parte do Legislativo local.
Para dar vazão às demandas, no dia 15 de setembro de 2020, o governador chegou a vincular todos os cargos comissionados vagos ao próprio gabinete. O decreto (nº 41.198), publicado no Diário Oficial, é direto: “Art. 1º: Ficam transferidos todos os cargos comissionados vagos da administração pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo do Distrito Federal para o Gabinete do Governador”.
(Veja imagem do Diário Oficial do dia 15 de setembro)
Mesmo com crises no Distrito Federal, Ibaneis tem se destacado como uma das principais lideranças do partido, além de demonstrar ter uma boa relação próxima com o presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem Partido). Ele também possui forte trânsito no meio jurídico, em especial, nos tribunais superiores que se situam na capital do país.
Procurados, a reportagem não recebeu resposta dos questionamentos feitos ao governador do DF, Ibaneis Rocha; ao secretário de Economia, André Clemente; e à gerente Cristiane de Faria. Com relação à ex-esposa e contadora, Luzineide de Carvalho, a reportagem procurou contato por meio do telefone registrado em nome da empresa, mas não conseguiu contato. O Quid Novi, porém, se coloca a disposição para futuras manifestações.